Lira Neto mostra Oswald de Andrade assustador em biografia - 01/02/2025 - Ilustrada

Lira Neto mostra Oswald de Andrade assustador em biografia – 01/02/2025 – Ilustrada

Embora o jovem Oswald de Andrade já tivesse demonstrado uma queda para a subversão ao lançar o semanário de tom satírico O Pirralho, seus pais ainda acreditavam que o rapaz nascido em São Paulo em 1890 seguiria uma conduta de bom comportamento pela vida afora.

Aos 22 anos, em uma viagem à França bancada pela família, Oswald recebeu uma carta com recomendações de Inês, sua mãe. Ela pedia ao filho que aproveitasse a experiência europeia para se tornar um “perfeito cavalheiro”.

Inês, que morreu algumas semanas depois, não acompanhou as proezas intelectuais do filho, um defensor eloquente do modernismo, criador de movimentos da cultura brasileira, como a antropofagia, e autor de obras-primas como “Memórias Sentimentais de João Miramar”, romance de 1924, e “Pau-Brasil”, volume de poesias lançado no ano seguinte.

Sua mãe tampouco vivenciou a sucessão infindável de conflitos ligados a Oswald, que se tornou um homem em tudo distante do ideal do “cavalheiro”, como mostra Lira Neto na biografia “Oswald de Andrade – Mau Selvagem”, que será lançada no dia 19 deste mês em São Paulo.

“Há o Oswald que assusta e o Oswald que entusiasma e, por isso, ele é fascinante”, afirma o jornalista, que levou cerca de quatro anos para concluir o projeto. Lira Neto já havia se dedicado a nomes da cultura, caso da cantora Maysa, e da política, como Getúlio Vargas e o marechal Castello Branco, figuras com trajetórias repletas de ambiguidades, tal qual Oswald.

“Não estou em busca de seres humanos perfeitos para biografar. A matéria-prima para a biografia são as inconstâncias da alma humana”, diz.

O “Oswald que assusta” aparece, por exemplo, durante essa viagem de navio pelo Atlântico, quando o autor se encantou por Landa, uma garota que mal havia chegado à adolescência. Tempos depois, em meados da década de 1910, eles se envolveram por um curto período –Oswald tinha 26 anos e Landa, 13.

É preciso não confundir profundidade com sisudez

Em 64 anos de vida, Oswald se casou sete vezes e sempre manteve relações extraconjugais, algumas delas com meninas com menos de 18 anos. “Nas suas memórias, ele admitiu situações como essa, com a Landa, e dizia não ver nelas nenhuma monstruosidade”, conta o biógrafo.

Não titubeava antes de enganar suas mulheres, inclusive aquelas pelas quais tinha grande admiração, como a artista Tarsila do Amaral e a escritora Pagu.

O Oswald mulherengo era tão insaciável quanto o Oswald polemista. Atuante ao longo de mais de quatro décadas em diferentes jornais, criticou duramente vários dos expoentes da cultura da época, além de líderes políticos.

Foi demolidor como um “boxeur”, uma metáfora da sua predileção, ao escrever sobre Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Villa-Lobos e Di Cavalcanti, alguns dos amigos com quem organizou a Semana de 22. Aos poucos, todos se afastaram dele.

Atacava a criação, fosse um livro, uma peça musical ou uma pintura. Mas não só. Também golpeava mirando aspectos pessoais do alvo dos seus artigos.

Em uma carta enviada a Mário, o poeta Manuel Bandeira escreveu: “Do Oswald, só há dois meios de se defender: ou fazer mais blague e mais intriga do que ele ou então afastar-se. Ambas as coisas são muito difíceis porque: que sujeito engraçado! que sujeito cínico! que filho da puta gostoso!”.

Oswald conhecia sua capacidade destrutiva, uma consciência tratada com o sarcasmo que sempre o acompanhou. Ao se casar com Pagu, em 1930, anotou no diário dela: “Nesta data contrataram casamento a jovem amorosa Patrícia Galvão e o crápula forte Oswald de Andrade”.

Seria simplista demais, porém, reduzi-lo a um rótulo, qualquer que seja ele. Segundo Lira Neto, duas reações são recorrentes quando o nome de Oswald é mencionado. “Uma de muito entusiasmo, lembrando o ativista do modernismo, a importância que ele teve na Semana de 22 e nos desdobramentos dela. E outra reação é falar dele como mau caráter, misógino, machista. Essa dicotomia não é útil para uma biografia”, diz.

“Minha preocupação central foi mostrar que ele era, ao mesmo tempo, um homem genial e um ser humano com questões muito sérias do ponto de vista ético.”

Para o biógrafo, Oswald é uma “eterna contradição”. Na vida espiritual, por exemplo. Em descompasso com o catolicismo familiar, era agnóstico, mas fazia promessas para Nossa Senhora. Ou no modo como via as mulheres. Chegou a defender a utopia do matriarcado enquanto colecionava episódios de adultério.

“Lá atrás, Oswald já tinha um pensamento pós-colonial, algo tão em evidência hoje. Era contra o patriarcado, o capitalismo e o colonialismo”, afirma Lira Neto.

Dos 32 capítulos de “Mau Selvagem”, que se estendem por 528 páginas, apenas dois abordam de modo mais detalhado a Semana de Arte Moderna, momento ao qual Oswald é mais associado. Menos difundido entre os leitores, o lançamento do Manifesto Antropófago, em 1928, é um episódio que recebe tanta (ou mais) atenção ao longo da biografia.

“A antropofagia continua a servir de chave para muitas das questões contemporâneas nos estudos culturais”, diz o biógrafo. “Oswald acreditava que a cultura posta numa situação de subordinação e dependência tinha que devorar a cultura que lhe parecia superior para se apropriar das suas virtudes”.

Lira Neto ressalta ainda a potência inovadora da dramaturgia de Oswald, com textos da década de 1930, como “O Rei da Vela” e “A Morta”. Para o biógrafo, ele não é considerado o pai do moderno teatro brasileiro porque, de tão ousadas, suas peças só foram encenadas décadas depois de escritas. O título coube a Nelson Rodrigues.

Oswald morreu, esquecido, em 1954. Sua obra só começou a ser revalorizada com a publicação de uma seleção de textos do autor, organizada pelo poeta Haroldo de Campos, em 1966.

Em seguida, veio a montagem de “O Rei da Vela”, peça dirigida por Zé Celso que surpreendeu muita gente, inclusive um rapaz de 20 anos chamado Caetano Veloso. Em formação, o caldo tropicalista ganhava mais densidade com uma porção de antropofagia.

Empenhado na “dessacralização de tudo”, como diz Lira Neto, Oswald estava de volta. Agora, ao que parece, definitivamente.

O riso de Oswald está muito próximo de um certo instinto de violência. Não é à toa que ele elegeu o antropófago como grande metáfora […] Não é o riso do entretenimento. A comicidade para ele tem um componente agressivo, para tirar o leitor ou o espectador da imobilidade



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