Grupo Galpão vê atualidade em obra de Saramago no teatro - 22/06/2025 - Ilustrada

Grupo Galpão vê atualidade em obra de Saramago no teatro – 22/06/2025 – Ilustrada

Neste mês, ataques de Israel mataram dezenas de pessoas durante a distribuição de alimentos em Gaza. Cena muito parecida à que vemos entre guardas e cegos em “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, novo espetáculo do mineiro Grupo Galpão, adaptado da obra do Nobel português José Saramago, morto há 15 anos, pelo diretor e dramaturgo fluminense Rodrigo Portella.

Alguns escritos assumem pertinência inaudita tempos depois. Passada a pandemia, acirrados os fundamentalismos religiosos e políticos, a crise econômica e ecológica, e a substituição do humano pela inteligência artificial, o “Ensaio sobre a Cegueira”, publicado 30 anos atrás, já não parece tão distópico.

“Ele se tornou mais atual com as redes sociais, fake news, discursos de ódio, a ascensão da extrema-direita e das autocracias no mundo”, concorda o ator Eduardo Moreira, que faz o médico acometido pela epidemia.

Após a estreia em Belo Horizonte, o espetáculo vai a Porto Alegre, de 22 a 24 de agosto. No fim do mesmo mês, chega ao Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, e em outubro, ao Sesc 14 Bis, em São Paulo.

Desde a maré branca que toma a visão do primeiro cego até o isolamento dos contagiados em condições degradantes, a peça se constrói nas delicadezas do jogo coletivo, capaz de modular o cômico, o insano, o trágico e o lúcido. Valoriza a escuta, despida dos excessos de imagens que insensibilizam o olhar.

Os artistas orquestram silêncios e sonoridades executando a trilha sonora ao vivo. “São poucas notas para cada um, mas, quando se somam, resultam em coisas interessantes”, afirma a atriz Inês Peixoto.

Há lugar para o patético, na crueldade recreativa dos comandantes, e para a densidade dramática, no horror a que se submetem as mulheres em troca de alimento. “Rodrigo fala que o farsesco abre o coração das pessoas para o ápice do drama”, comenta Moreira.

Ator e diretor situam Saramago como “um homem do século 20”, isto é, da crença na universalidade e na racionalidade. Entretanto, Moreira observa no romancista um amor ao feminino como possibilidade de libertação. “A gente realçou isso de que a mulher é quem pode encontrar um caminho de reconciliação com o humano, com o ver de fato, com o reparar”, diz o ator.

Para ele, “o teatro pode ser o lugar do antídoto a essa fabricação desenfreada de imagens que nos consome. As pessoas já não prestam mais atenção a nada, já não se relacionam com ninguém. A tela nos trouxe uma cegueira absoluta sobre a humanidade”.

Às personagens femininas cabem a união e a transformação. Por isso, a Mulher do Médico, representada por Fernanda Vianna, é rebatizada como a Mulher que Vê. “Saramago contava que estava escrevendo e pensava: ‘Não sei quando a cegueira dela vai chegar’, até perceber que nunca chegaria, porque era esse elemento feminino acolhedor, de não sucumbir à violência, de uma delicadeza que não é frágil”, diz Vianna.

Já a Mulher do Primeiro Cego manteve sua alcunha por seu arco dramático. “Entendi que a minha personagem não faz nada pela história, é a história que faz por ela”, constata Inês Peixoto.

O Galpão vinha do humor político popular de “Cabaré Coragem”, dirigida por um de seus integrantes, Júlio Maciel, depois de dois trabalhos com Márcio Abreu que exploravam aspectos mais performáticos do texto e da cena, “Outros” e “Nós”.

“(Um) Ensaio sobre a Cegueira” faz uma amarração interessante entre essas linguagens já experimentadas pelo grupo e a verve de Rodrigo Portella, vencedor do Shell de dramaturgia por “Tom na Fazenda”, e para quem são referências os romances em cena de Aderbal Freire Filho e o teatro ensaístico de Enrique Diaz.

Portella acompanhava o repertório do Galpão desde “Um Molière Imaginário”, nos anos 1990. “É um grupo muito heterogêneo e corajoso”, afirma o diretor. Características que ele buscava para o projeto.

A adaptação de Saramago preserva a história como modo de organização do mundo, capaz de se contrapor à dispersão fragmentária de nosso tempo. Ao mesmo tempo, os atores dão um passo além da função de narradores, assumindo-se “formuladores” da cena, de modo que as dimensões da criação e da ação no presente se evidenciem.

Além disso, precisam conduzir 14 espectadores que entram em cena vendados, para uma experiência como figurantes, até o final reinventado. “Não queríamos o niilismo europeu”, diz Vianna.

Essa costura sofisticada de linguagens, que complexifica a obra e lhe aviva as sutilezas, sustenta-se na maturidade do grupo mineiro e na contundência crítica do diretor. “Para mim, fica claro que a cegueira branca é uma alusão aos processos de colonização do homem branco europeu. Hoje, vejo não como um processo de desumanização, mas um projeto de poder. Essa cegueira é colonizadora, exploratória, imperialista”, diz Portella, que mora na Espanha.



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