A resposta estava pronta para ser divulgada. Após manchetes furiosas em um jornal britânico acusarem a BBC de viés institucional por causa de uma edição enganosa de um discurso do presidente Donald Trump, os principais executivos da emissora pública britânica sabiam que precisavam agir de forma rápida.
No último dia 4, um dia após o primeiro artigo ter aparecido online, eles estavam prontos para divulgar uma declaração aprovada pela principal equipe de comunicação da BBC e pelo diretor-geral, Tim Davie.
A declaração reconheceria que o Panorama, o principal programa investigativo da emissora, havia cometido um erro ao combinar trechos do discurso de Trump de 6 de janeiro de 2021, pouco antes do ataque ao Capitólio.
Para frustração deles, os executivos, incluindo a diretora da divisão de notícias, Deborah Turness, foram impedidos pelo conselho da BBC, segundo quatro executivos e outro funcionário sênior com conhecimento dos acontecimentos. Executivos da divisão de notícias e membros do conselho não chegavam a um acordo —deveriam focar o erro de edição ou admitir falhas mais amplas na Redação?
Em vez de abordar as críticas, a BBC permaneceu em silêncio por sete dias. No vácuo, uma onda de manchetes se transformou em um dilúvio de acusações não contestadas que acabou envolvendo a Casa Branca, com a secretária de imprensa Karoline Leavitt declarando que a BBC era “100% fake news”.
Quando a emissora finalmente divulgou uma declaração, o escândalo já havia engolido a empresa e provocado as renúncias de Davie e Turness.
A história de como a BBC mergulhou em uma das piores crises em seus 103 anos de história pode ter se concentrado na edição enganosa das declarações de Trump. Mas tratava-se de algo muito maior: uma discussão de longa data, frequentemente impulsionada pela direita, sobre um suposto viés institucional da emissora.
Há muito tempo um representante das batalhas culturais no Reino Unido, a BBC tem enfrentado ataques políticos cada vez mais intensos, expondo a instituição a potenciais cortes de financiamento e responsabilização jurídica. Trump ameaçou processar a BBC por US$ 1 bilhão ou mais.
Este relato é baseado em documentos públicos e entrevistas do The New York Times com nove executivos atuais da BBC e funcionários seniores com conhecimento dos acontecimentos, incluindo uma reunião emergencial do conselho em 6 de novembro. Os funcionários falaram sob anonimato porque não tinham permissão para falar publicamente. A BBC recusou-se a comentar.
Uma batalha no conselho
A manchete de 3 de novembro no jornal de direita Daily Telegraph foi direta: “BBC adulterou discurso de Trump”.
A reportagem citava uma carta de um ex-conselheiro do comitê de padrões da BBC, Michael Prescott, descrevendo o que ele chamou de “questões sistêmicas preocupantes na cobertura da BBC”, incluindo as imagens editadas do Panorama.
No dia seguinte, um comitê parlamentar escreveu ao presidente do conselho da BBC, Samir Shah, exigindo respostas.
À medida que os dias passavam sem resposta, parlamentares se manifestaram, os pedidos de providências se multiplicaram e a crise dominou o noticiário.
Lá Fora
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Em 6 de novembro, às 17h, 11 membros do conselho se reuniram para uma reunião de emergência. Vários estavam furiosos com os adiamentos e discutiram a melhor forma de responder à crise, segundo dois executivos da BBC e um funcionário sênior com conhecimento da reunião.
Na reunião, Turness pressionou para que o conselho respondesse às acusações de viés institucional e queria que a declaração informasse que não houve intenção de enganar, disseram os três funcionários.
Uma das vozes mais poderosas no conselho, Robbie Gibb, discordou, segundo os três funcionários. Ele queria que a resposta fosse mais ampla e em um tom mais arrependido. Os outros quatro indicados políticos do conselho, todos nomeados por governos conservadores, também se opuseram à linguagem proposta por Turness.
Procurado, Gibb não respondeu a um pedido de comentário.
Com experiência em mídia e política conservadora, Gibb há muito acusava a BBC de ter viés de esquerda. Ele foi nomeado para o conselho em 2021 pelo conservador Boris Johnson, um crítico de longa data da emisora que à época era primeiro-ministro. Gibb fez um lobby para conseguir o papel consultivo para Prescott, o autor do memorando, segundo dois executivos seniores.
Os aliados de Turness na reunião eram menos numerosos e menos coordenados, disseram os três funcionários. Um membro do conselho não foi à reunião porque estava na Antártida. Outros tinham pouca experiência em jornalismo e não eram tão vocais. Desses membros, nomeados por uma subseção do conselho, um tinha experiência jornalística, e os demais haviam trabalhado em áreas como finanças, gestão e energia.
A discussão terminou em impasse. O conselho havia impedido a BBC News de divulgar uma declaração sobre a BBC News. Naquele fim de semana, Turness e Davie renunciaram.
Davie, desgastado por escândalos anteriores da BBC, já estava de olho em sua saída e referiu-se apenas indiretamente à controvérsia de Trump em sua carta de renúncia. “Embora não seja o único motivo”, escreveu, “o debate atual em torno da BBC News contribuiu compreensivelmente para minha decisão”.
Turness foi mais direta. “Tomei a difícil decisão de que não será mais meu papel liderar vocês na visão coletiva que todos temos: buscar a verdade”, escreveu.
“Embora erros tenham sido cometidos”, acrescentou, “quero deixar absolutamente claro que as recentes alegações de que a BBC News tem viés institucional estão erradas”.
Na segunda-feira, 10 de novembro, uma semana após o primeiro artigo do Telegraph e um dia após as duas renúncias, a BBC divulgou uma resposta.
Em uma carta ao comitê parlamentar, Shah pediu desculpas pelo “erro de julgamento” da BBC na edição do vídeo. Sem abordar diretamente as acusações de viés institucional, ele disse que a BBC havia “produzido milhares de horas de jornalismo excepcional” e que era “importante manter um senso de perspectiva”.
A edição
Editar vídeos para encurtar a duração de uma matéria é uma prática padrão no telejornalismo, mas é um princípio básico garantir que tais cortes não enganem.
Trump falou por 70 minutos. A edição final, liderada pelo veterano produtor da BBC Matthew Hill, combinou partes iniciais do discurso com uma seção 54 minutos depois, condensando-as em um clipe de 12 segundos. “Vamos descer até o Capitólio” e “Estarei lá com vocês” foram emendados com “E nós lutamos. Lutamos como o inferno”.
Isso sugeriu uma ligação direta entre as palavras de Trump e o ataque ao Capitólio. O problema na edição não foi detectado por outros na equipe, supervisionada pela experiente editora do programa Karen Wightman.
Cercanías
A newsletter da Folha sobre América Latina, editada pela historiadora e jornalista Sylvia Colombo
A BBC e Wightman recusaram-se a comentar. Hill não respondeu a um pedido de comentário. “Não houve intenção de enganar”, disse a BBC News em uma declaração de 10 de novembro. “A intenção desta sequência era transmitir as mensagens-chave do discurso em um formato condensado”.
Não foi a primeira vez que o Panorama enfrentou críticas por imagens editadas. No lado oposto do espectro político, a BBC reconheceu de forma discreta em 2022 que um material do Panorama investigando o antissemitismo dentro do Partido Trabalhista, exibido três anos antes, tinha uma edição enganosa de uma entrevista.
O documentário sobre o 6 de Janeiro — “Trump: Uma Segunda Chance?” — atraiu pouca atenção quando foi ao ar em outubro de 2024.
No decorrer daquele ano, Gibb encomendou uma avaliação da cobertura da emissora sobre a eleição americana de 2024, segundo os dois executivos seniores de notícias. Ele escolheu um jornalista da BBC, David Grossman, pesquisador do comitê de padrões, disseram esses executivos. Quando Grossman entregou seu relatório em janeiro de 2025, ele apontou a edição enganosa de Trump.
Prescott expressou suas preocupações em uma reunião subsequente do comitê de padrões com executivos da BBC News, segundo a carta de Shah ao Parlamento. Os executivos lhe disseram que a questão havia sido levantada com a equipe do Panorama, que defendeu seu jornalismo, segundo os dois executivos seniores de notícias. Nenhuma ação formal foi tomada.
O contrato de Prescott venceu em junho de 2025 e não foi prorrogado, segundo dois funcionários da BBC com conhecimento do assunto, e ele enviou seu memorando, sem ser solicitado, ao conselho meses depois de sair. Foi este documento que posteriormente vazou para o Telegraph.
O memorando dizia que o documentário sobre Trump “não era nem equilibrado, nem imparcial”. Também acusava a BBC de mostrar viés sistemático em sua cobertura da eleição americana, de questões em torno da diversidade racial, da guerra Israel-Hamas e dos direitos transgêneros.
Prescott recusou-se a comentar para esta reportagem, mas, no memorando, escreveu que suas opiniões sobre a BBC “não vêm com qualquer agenda política”.
Shah criticaria posteriormente o memorando em sua carta ao comitê parlamentar, dizendo que ele não dava “um quadro completo” da situação. A BBC, disse ele, já havia abordado muitas das questões levantadas por Prescott, incluindo a reestruturação da BBC Arabic para fortalecer a supervisão editorial e, em outros casos, divulgando correções ou adotando medidas disciplinares.
Mas reconheceu que, sobre a reclamação do Panorama, “teria sido melhor adotar uma medida mais formal”.
‘Culturalmente Capturada’
Oito meses antes de ingressar no conselho, Gibb escreveu uma coluna no Telegraph na qual não escondeu suas opiniões sobre a emissora.
“A BBC foi culturalmente capturada pelo pensamento ‘woke’ de alguns de seus próprios funcionários”, escreveu. “Há um padrão de atitudes de inclinação à esquerda de uma força de trabalho metropolitana majoritariamente oriunda de um contexto social e econômico similar”.
Mas ele também defendeu a BBC. Em uma entrevista de 2020, ele disse que a emissora valia o investimento, citou o ganho gerado por suas vastas operações em entretenimento e notícias e se posicionou a favor da taxa de licença paga pelas famílias britânicas.
Dois dias após sua renúncia, Davie, que havia iniciado sua carreira na BBC duas décadas atrás no departamento de marketing, dirigiu-se à reunião geral.
Vestindo um terno escuro e, como de costume, sem gravata, Davie tentou acalmar e reunir a equipe. Ele disse que estava “ferozmente orgulhoso” da empresa, segundo a BBC, e se referiu a “momentos tumultuados” que ela havia enfrentado anteriormente. “Vocês podem fazer perguntas como: ‘Para onde vai a BBC? Estamos à deriva? O que acontece com o futuro?'”, disse ele.
“Eu diria que este é um momento difícil para a BBC”, acrescentou. “Nós vamos superar isso.”


