Abandono de pessoas idosas é crime e aumenta no Brasil - 03/12/2025 - Cotidiano

Abandono de pessoas idosas é crime e aumenta no Brasil – 03/12/2025 – Cotidiano

Marta [nome fictício] tinha 71 anos quando foi internada em um hospital de Osasco, na Grande São Paulo. O marido a acompanhou por alguns dias, até que deixou de visitar a esposa, que não apresentava melhoras e continuava hospitalizada.

Após algumas semanas, a agente social Meliana Emiliano ficou preocupada e, com apoio legal, buscou o companheiro na moradia dos dois. “Ele estava lindo e maravilhoso, vivendo muito bem com a aposentadoria da esposa, sem ir visitá-la; quando pedimos à Justiça que a aposentadoria fosse destinada ao cuidado dela, aí, ele voltou a frequentar o hospital”, narra.

A história de Marta integra as mais recentes estatísticas do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que registrou aumento no número de denúncias de abandono de pessoas idosas nos últimos anos. Em 2024, de acordo com o painel de dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do órgão, elas cresceram mais de 26% em relação ao ano anterior: passaram para 62.688, ante 49.749 denúncias em 2023. Até o fim de novembro de 2025, as denúncias de violação da integridade física por meio de abandono somavam 60.271.

A curva ascendente chama atenção num momento de alteração da pirâmide etária brasileira: segundo dados do último Censo de 2022, a população com mais de 60 anos cresceu 56% em relação a 2010, ultrapassando 32,1 milhões —o equivalente a quase 16% da população contabilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) naquele ano.

O que configura abandono de uma pessoa idosa?

Para o Secretário Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Alexandre da Silva, o abandono não se limita à ausência total de amparo —e se manifesta, muitas vezes, como negligência material e afetiva. “Como quando se oferece apenas um mínimo de comida, não há troca de afeto, e compromete-se a qualidade de vida digna”, explica, em entrevista à DW.

Este cenário pode ser agravado pela situação financeira de familiares. Mesmo sem intenção, eles podem não conseguir suprir as necessidades dos idosos, colocando-os em risco por não ‘darem conta’ das múltiplas demandas oriundas do envelhecimento.

Silva também aponta que a maior parte dos casos de abandono está ligada a desafios socioeconômicos. Neste contexto, o abandono de idosos não é apenas familiar. Ele acontece também pela comunidade e pelo Estado, quando este não é capaz de dar a assistência adequada para manter os idosos em condições mínimas de dignidade.

Outros fatores também influenciam o cenário de abandono no âmbito nacional, segundo o secretário: o aumento da expectativa de vida da população, a queda da fecundidade , a redução da família como extensão de laços afetivos, com menos integrantes para oferecer apoio; e a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Como a carga do cuidado ainda recai majoritariamente sobre elas, o movimento tem como efeito a redução de pessoas disponíveis para cuidar dos idosos em tempo integral.

Qualquer pessoa —um vizinho, um amigo— pode denunciar anonimamente uma situação de abandono. As denúncias podem ser feitas nos conselhos municipais e estaduais da pessoa idosa ou pelo telefone do Disque Direitos Humanos: o número é 100.

Boa parte das denúncias é apurada pelo Ministério Público (MP), responsável junto ao serviço social e à Defensoria Pública por garantir a integridade desta população quando o abandono se torna mais crítico.

“Deixar o idoso à própria sorte, sem amparo, atenção e cuidado pode ser caracterizado como crime; se uma pessoa idosa tem filhos e estes têm capacidade [de cuidar], eles podem ser processados; e, se houver indícios de abandono mesmo, negligência e [de] intencionalmente não contribuir, podem mesmo ser acionados por abandono”, explica Maria Alzira Alvarenga, promotora de Justiça de São Paulo e coordenadora do centro de apoio à Pessoa Idosa do Ministério Público de São Paulo (MPSP).

Ela distingue que, embora se confundam, o “desamparo” pode ser decorrente da falta de condições econômicas da família ou da cognição comprometida do idoso, enquanto o “abandono total” é uma atitude dolosa e proposital da família, que não quer saber do idoso.

Amanda Lourenço dá outro exemplo. Ela é uma das agentes sociais responsáveis pelo cuidado dos idosos que procuram o Creci (Centro de referência do Idoso) no centro de São Paulo. Com programação de segunda a sexta-feira das 9h às 18h, cerca de 550 idosos com mais de 60 anos procuram o centro quase diariamente em busca de interação social e suporte. Um público que vem aumentando com o envelhecimento da população e que expõe a sua vulnerabilidade.

“Temos uma comunidade de idosos muito ativos , e por isso é raro o abandono físico, daquele idoso mais debilitado; mas é em certo ponto comum [termos] os casos de abandono afetivo, psicológico ou mesmo financeiro, com uso do dinheiro do idoso sem sua permissão”, exemplifica.

Penas maiores

A lei 15.163, sancionada em julho deste ano, aumenta a pena de alguns crimes praticados contra pessoa incapaz, idosa e com deficiência, entre outros dispositivos. “No caso do idoso, ela aumenta as penas do crime de expor a perigo a integridade, a saúde física ou psíquica da pessoa, e também aumenta as penas previstas no Código Penal para crimes de abandono de incapaz e maus-tratos”, explica a promotora.

O Art. 99 do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/2003), por exemplo, teve as penas de detenção alteradas para reclusão de dois a cinco anos. Antes, a pena era de dois meses a um ano de reclusão por “expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado”.

Quais são os direitos da pessoa idosa?

O Estatuto estabelece que “é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa (…) o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

O texto completou 22 anos no começo de outubro. Entre seus 118 artigos, garante o direito ao alimento por parte de familiares. Esse direito pode ser exigido por lei.

Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), João Paulo Iotti explica que este dever é semelhante àquele em que os pais têm de fornecer alimentos aos filhos. “Este é um tipo de abandono material que pode incluir a negligência, e ela é perigosa porque em última instância pode levar até mesmo à morte”, alerta o advogado.

Ele defende que as políticas públicas, além do amparo direto à população idosa, se concentrem na maior educação quanto aos direitos e deveres de familiares, idosos e comunidade, contando até mesmo com ensino em escolas sobre o envelhecimento .

“Por vezes, o idoso em abandono ou indigência não sabe sequer estar nesta condição porque as violações ocorrem geralmente dentro do próprio nicho familiar, que também não tem consciência, e aí [o crime] é agravado pela negligência ou omissão do poder público”, constata.



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