O conflito em torno da cassação da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), determinada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), mas negada pela Câmara na madrugada desta quinta-feira (11), se dá em razão da possibilidade de mais de uma interpretação constitucional sobre o tema, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Eles citam que tanto a discussão do assunto no plenário quanto a determinação pela Mesa da Casa eram possíveis no cenário da parlamentar, uma vez que o caso é compatível com dois trechos da Constituição, cada um com regras diferentes. Apontam, entretanto, que o cenário tende à cassação, uma vez que a parlamentar teve os direitos políticos suspensos.
Zambelli teve a cassação determinada pelo STF em razão de condenação com trânsito em julgado na corte. Na madrugada desta quinta, porém, a Câmara levou o assunto ao plenário e manteve o mandato da parlamentar.
No mesmo dia, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes afirmou em decisão que “é o Poder Judiciário quem determina a perda do mandato parlamentar condenado criminalmente com trânsito em julgado, cabendo à Mesa da Câmara dos Deputados, nos termos do §3º do artigo 55 da Constituição Federal, tão somente DECLARAR A PERDA DO MANDATO, ou seja, editar ato administrativo vinculado”.
Ele chamou a sessão na Câmara de nula, “por evidente inconstitucionalidade, presentes tanto o desrespeito aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade, quanto flagrante desvio de finalidade”. Por isso, declarou nulo o ato da Casa e determinou a posse do suplente da parlamentar.
Segundo Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral, o caso da deputada pôde ir ao plenário porque se enquadra em dois incisos sobre perda de mandato presentes na Constituição, um sobre a cassação em razão de direitos políticos suspensos e outro sobre condenação criminal transitada em julgado.
“A diferença é que, em um deles, a decisão é da Mesa da Câmara. No outro, quem decide é o plenário”. Para o especialista, diante dessa dupla possibilidade, Motta aplicou o dispositivo que lhe interessava politicamente, levando o tema ao plenário.
Para Rollo, a decisão da Câmara, porém, é contestável sob o argumento de que parlamentares com o direito político suspenso, caso de Zambelli, não podem exercer o mandato.
Segundo o especialista, foi isso que pesou na decisão de Moraes. ” O ministro entendeu que a Câmara não tinha outro caminho a não ser decidir a perda do mandato, porque não existe deputado sem direitos políticos”.
Segundo Ricardo Gueiros, professor de direito da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), o caso apresenta, tecnicamente, um conflito de interpretações constitucionais. “Entretanto, a decisão do ministro Alexandre de Moraes segue a linha mais recente da jurisprudência do STF. O entendimento jurídico consolidado é que, quando a condenação impõe o regime fechado e a suspensão de direitos políticos, como foi o caso, a perda do mandato é uma consequência automática e lógica da sentença”, diz.
“Não parece fazer tanto sentido a Câmara votar para manter no cargo uma pessoa que está foragida em outro país e condenada à prisão, pois ela perdeu os requisitos básicos para o exercício da função. Nesse cenário, o papel da Mesa Diretora deveria ser apenas o de declarar a perda do mandato (ato declaratório), e não submeter o caso ao plenário como se fosse uma escolha política”.
Gueiros aponta que, com a decisão de Moraes, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), pode cumprir a decisão judicial e empossar o suplente em 48 horas, reconhecendo a autoridade do Supremo, ou confrontar o STF, “o que pode gerar consequências criminais por desobediência para a própria Mesa Diretora”.
FolhaJus
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Welington Arruda, mestre em direito e justiça pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), entende que tem sido adotada pelo Supremo a interpretação de que a perda do mandato é consequência direta da condenação e que cabe à Mesa da Câmara apenas declarar a vacância, sem nova decisão política do plenário.
“Quando a Câmara leva o caso a voto e decide manter o mandato, ela adota outra leitura –próxima da que a Segunda Turma usou no caso [do ex-deputado] Nelson Meurer – segundo a qual sempre caberia ao plenário decidir. É justamente esse choque de interpretações que está no centro da crise de hoje”.
O especialista afirma haver precedentes importantes, como os casos de Natan Donadon, Paulo Feijó e do próprio Meurer. No caso do ex-deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO), o STF determinou em 2013 a prisão do parlamentar em razão de condenação por formação de quadrilha e peculato. A Câmara levou o caso ao plenário, que manteve o mandato do parlamentar. Donadon, entretanto, foi afastado do cargo pelo então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves. Ele foi posteriormente cassado por um procedimento aberto no Conselho de Ética.
“Em alguns casos, o STF defendeu a perda automática do mandato em caso de pena em regime fechado. Em outros, prevaleceu a ideia de que a decisão final é da Câmara. O que é inédito agora é a combinação de fatores: uma deputada condenada, presa no exterior, cuja cassação não passou no plenário, e um ministro do Supremo que, em seguida, anula essa decisão política e impõe diretamente a perda do mandato”, afirma Arruda.
Segundo ele, agora a Mesa da Câmara pode, em tese, cumprir a ordem, declarar a vacância e comunicar ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para a convocação do suplente. Ela também pode recorrer ao próprio STF, pedindo que o plenário reavalie os limites dessa perda automática de mandato. “Até lá, a tendência é de aumento de tensão institucional se houver resistência em cumprir a decisão”, afirma o especialista.


