Chica da Silva foi figura de ruptura, diz atriz Zezé Motta - 21/12/2025 - Ilustríssima

Chica da Silva foi figura de ruptura, diz atriz Zezé Motta – 21/12/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Em entrevista, Zezé Motta relembra como foi interpretar Chica da Silva no filme de Cacá Diegues, grande sucesso em 1976, fala da importância de uma protagonista negra no cinema da época e analisa o que a obra ainda nos diz em meio às noções de afirmação racial e identidade negra como as entendemos hoje.

Chica da Silva já era bem conhecida nos anos 1970. Além de ter sido mote de livros publicados nas décadas anteriores, a ex-escravizada do Arraial do Tejuco, atual Diamantina (MG), havia sido homenageada pela escola de samba Salgueiro em 1963, ano em que foi campeã do Carnaval carioca.

A mulher poderosa do Brasil do século 18 se tornou ainda mais popular país afora e ganhou projeção internacional com o filme de Cacá Diegues, de 1976. Surgia “Xica da Silva”, com o “x” substituindo o “ch” por uma escolha do cineasta, que morreu em fevereiro deste ano.

A produção associava a personagem a uma série de alegorias. Nos últimos anos, porém, novos projetos têm se preocupado em lembrar Chica com base nas pesquisas históricas.

A vida de Zezé Motta virou do avesso ao interpretar a personagem no filme. “Passei a ser vista como uma atriz capaz de sustentar protagonistas complexas, intensas e politizadas”, diz à Folha em entrevista por meio de troca de mensagens.

Para Zezé, é preciso reconhecer a “potência histórica” de Chica. “Não a vejo como um emblema de afirmação racial nos termos atuais, mas como uma figura de ruptura. Uma mulher negra que, mesmo dentro de um sistema brutal, conseguiu tensionar hierarquias, ocupar lugares interditados e desafiar a ordem estabelecida”, diz a atriz de 81 anos.

A reportagem usa o nome Chica, como fazem os historiadores. Mas preserva a grafia Xica nas respostas da atriz, como Zezé prefere.

Qual foi a relevância da Chica para sua história como atriz?
Posso dividir minha carreira em antes e depois da Xica. Ela me colocou no centro da cena e, sobretudo, no centro de uma discussão profunda sobre o Brasil, sobre raça, gênero e poder. Xica não era apenas uma personagem, era uma afirmação. Uma mulher negra que desejava, que ocupava espaços, que não aceitava o lugar da submissão, algo extremamente provocador para a época.

Virei símbolo sexual. Quando as pessoas começaram a me chamar de Xica na rua, fiquei incomodada. Já tinha uns oito anos de carreira no teatro, tinha feito um filme, novelas… Queria que meu nome artístico, dado pela Marília Pêra, emplacasse, mas só me chamavam pelo nome da personagem. Mais tarde, percebi que Xica era minha madrinha, que não tinha que reclamar da vida, não.

Sabia que Cacá estava fazendo teste, mas não tive coragem de me oferecer. E ele não estava encontrando a atriz para fazer a Xica. Se não encontrasse, como disse em sua biografia, ele não faria o filme.

Um dia, [o jornalista e produtor] Nelson Motta lembrou o Cacá: “E aquela atriz do musical ‘Godspell’?”. Fiz o teste com uma cena delicada, em que a Xica é proibida de entrar na igreja. Naquela época, até a quarta geração, quem tivesse negro no sangue não podia entrar na igreja dos brancos.

Tinha dificuldade para controlar minha agressividade. Tenho meu lado Oxum, que é doce, mas Iansã é a que vira a mesa. Oxum prevalece, sou muito conciliadora. Mas Iansã, de seis em seis meses, vira a mesa. Cacá percebeu isso.

Ganhei diversos prêmios de atriz em festivais de cinema. Viajamos por mais de 16 países, levamos mais de 3 milhões de brasileiros às salas de cinema. Interpretar Xica me deu visibilidade, mas também responsabilidade.

Passei a ser vista como atriz capaz de sustentar protagonistas complexas, intensas e politizadas. Marcou minha trajetória porque me revelou para o público e, de certa forma, também me revelou para mim mesma enquanto artista e mulher negra consciente do seu papel na cultura brasileira.

Foi importante para o cinema brasileiro dos anos 1970 ter uma protagonista negra?
Foi fundamental. Naquele momento, o cinema brasileiro praticamente não oferecia protagonismo às pessoas negras, muito menos em filmes para o grande público. Ter uma mulher negra no centro da narrativa, mobilizando desejo, conflito e poder, foi um gesto profundamente político, ainda que o filme também dialogasse com o entretenimento.

Segundo algumas historiadoras, Chica teve diversos méritos, mas não poderia ser considerada um símbolo de afirmação racial. Para elas, Chica buscava deixar a escravidão e iniciar uma ascensão social. Por isso, teve que se adaptar aos costumes brancos. Qual é sua opinião?
Compreendo esse ponto de vista e acho importante fazer essa distinção histórica. Não podemos projetar sobre o século 18 as noções de afirmação racial e identidade negra como as entendemos hoje. Xica não viveu em um tempo em que existisse um movimento organizado de consciência racial nos moldes contemporâneos, e sua trajetória se deu dentro das limitações impostas por uma sociedade escravocrata.

Ao buscar ascensão social, Xica precisou, sim, negociar com os códigos de poder vigentes, que eram essencialmente brancos. Isso não diminui sua complexidade nem a inteligência com que ela soube se mover naquele contexto. Ao contrário, revela uma mulher que leu o seu tempo e utilizou as ferramentas disponíveis para sobreviver, existir e conquistar espaço.

Quando penso em Xica como símbolo, não a vejo como um emblema de afirmação racial nos termos atuais, mas como uma figura de ruptura. Uma mulher negra que, mesmo dentro de um sistema brutal, conseguiu tensionar hierarquias, ocupar lugares interditados e desafiar a ordem estabelecida. É nessa fricção que reside sua potência histórica.

A afirmação que Xica representa hoje talvez não seja a que ela pôde nomear em vida, mas é a que sua história provoca em nós: a reflexão sobre poder, corpo, raça, desejo e sobrevivência. Isso é profundamente político e muito atual.

Especialistas apontam uma hipersexualização da sua personagem no filme.
Fui altamente criticada por algumas pessoas no movimento negro na época, mas elas esqueciam que estavam criticando uma atriz negra que tinha ganho um papel de destaque. Tem um vídeo da [antropóloga e ativista] Lélia Gonzalez sobre isso, ela foi uma das pessoas que saíram em minha defesa.

O filme foi realizado em um contexto histórico específico, tanto do Brasil colonial retratado quanto do cinema brasileiro dos anos 1970. A sexualidade de Xica aparece de forma muito explícita, e isso dialoga, sim, com uma tradição de hipersexualização dos corpos negros, especialmente das mulheres negras, algo que atravessa nossa história e nossa produção cultural.

Ao mesmo tempo, é importante lembrar que aquela sexualidade também foi apresentada como forma de poder dentro da narrativa. Xica não era uma personagem passiva: ela desejava, escolhia, conduzia relações. Isso não anula a crítica, mas ajuda a entender a ambiguidade do filme, entre a reprodução de estereótipos e a tentativa de subvertê-los.

Hoje, com o olhar que temos, é possível revisitar a obra de maneira crítica, reconhecendo limites e contradições. O que antes foi visto apenas como ousadia ou libertação, hoje também pode ser lido como excesso, como exposição, como resultado de um imaginário que nem sempre soube lidar com a mulher negra fora do campo do erotismo.

O mais importante é que essas leituras coexistam. Não apagam a relevância histórica do filme e ampliam o debate. E isso mostra que “Xica da Silva” continua viva como obra porque ainda provoca, incomoda e nos obriga a pensar sobre representação, corpo e poder.

Zezé Motta

Nascida em Campos dos Goytacazes em 1944, fez sua estreia profissional no teatro na peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, no final dos anos 1960. No cinema, foi premiada por filmes como “Xica da Silva” (1976), “Tudo Bem” (1978), “Gonzaga – de Pai para Filho” (2012) e “Doutor Gama” (2021). Destacou-se também na TV em novelas como “Beto Rockfeller” (1968) e “Corpo a Corpo” (1984). Nos últimos meses, tem apresentado a peça “Vou Fazer de Mim um Mundo”.



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