Aprendo com os leitores. Semanas atrás, escrevi nesta Folha sobre a covardia dos intelectuais, sempre prontos a marchar pelo absurdo do momento.
Um leitor do Recife, igualmente intrigado com o fenômeno, escreveu para sugerir um livro: “Por que se Enganam os Intelectuais”, de Samuel Fitoussi (há tradução portuguesa pela Bertrand).
Abençoado seja esse pernambucano erudito. Conhecia Fitoussi do jornal Le Figaro, mas não o ensaio, que traz novos argumentos para não levarmos a espécie muito a sério. Eu nunca levei.O autor parte da mesma premissa: seria de esperar que pessoas mais cultas, educadas e inteligentes tivessem um compromisso maior com a verdade.
Mas a história —essa vitrine de horrores— justifica nosso ceticismo. No século 20, o comunismo e o nazismo foram fenômenos de intelectuais, não das massas ou trabalhadores que seguiram ou foram subjugados pelas elites.
Na União Soviética, escreve Fitoussi, quem tinha um grau universitário era duas a três vezes mais suscetível de apoiar o PC do que cidadãos com ensino médio.
E na Alemanha nazista a maioria dos que decidiram a “solução final” na Conferência de Wannsee tinha doutorado. Explicações?
Charles Darwin estava parcialmente errado, defende o autor. Sim, em teoria, a razão permite ver a realidade tal como ela é —condição necessária para que a espécie tome decisões que garantam a sobrevivência.
Mas a verdade não é tudo. Ou, para usar a terminologia de Fitoussi, existe uma diferença entre a “racionalidade epistêmica” e “racionalidade social”. Nem sempre estão alinhadas. A primeira permite-nos conhecer a verdade. A segunda leva a questionar até que ponto é socialmente vantajoso defender essa verdade.
Em muitas circunstâncias, a possibilidade de nos tornarmos párias em nosso círculo social ou profissional é pior do que defender uma mentira. Por mais que o intelectual admire os exemplos de Sócrates, Copérnico ou Galileu, é mais provável que estivesse do lado de quem os condenou.
Até porque existe outro fator que merece referência: quanto mais baixo o preço da irracionalidade epistêmica, mais o intelectual se entrega à racionalidade social.
Se, por absurdo, o intelectual sofresse as consequências das ideias imbecis ou até criminosas que defende, teria mais cuidado com a racionalidade epistêmica. A verdade seria mais importante do que a reputação entre os pares.
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Mas um intelectual, sobretudo nas ciências humanas, nunca paga esse preço. Ele não é um açougueiro vendendo carne estragada. A falência ou a cadeia não são consequências reais para ele.
Pelo contrário: como sua identidade está intimamente ligada às ideias que defende, existe um incentivo perverso para continuar a defendê-las independentemente das consequências para os outros —e com redobrado vigor.
Samuel Fitoussi relembra o caso de Georg Lukács (1885-1971), para quem o marxismo continuaria a ser válido mesmo que todas as previsões empíricas da teoria fossem refutadas (como, aliás, foram). Reconhecer o erro é mais grave do que insistir nele.
E os honestos? Falo daqueles que acreditam honestamente nas ideias bizarras que defendem porque pensam que são a verdade. Como explicar a insistência no erro?
Uma vez mais, Fitoussi reformula o clichê: o intelectual não é aquele que escolhe as melhores ideias, mas aquele que melhor defende as suas ideias para lá de qualquer evidência.
Ou, dito ainda de outra forma, não são os fatos que alteram as convicções, mas as convicções que moldam os fatos.
Um exemplo: quem parte do pressuposto de que o comunismo é sempre superior ao capitalismo não altera essa posição só porque o comunismo foi incapaz de reduzir a pobreza.
Os malefícios do capitalismo são apresentados sob novas roupagens —o materialismo corrompe o espírito, a desigualdade é pior que a miséria etc.— para que a ideologia primordial se mantenha.
Aliás, numa das observações mais luminosas do ensaio, Fitoussi sugere que as ideologias são como fósseis: elas procuraram responder a uma situação histórica particular —mas depois sobreviveram como vestígios que são usados como se ainda estivessem vivos.
Só isso explica, acrescento eu, a lógica ilógica de qualquer ideologia: o fato de ela oferecer a mesma resposta —mais liberdade, mais igualdade ou mais fraternidade— independente do contexto.
No fundo, o “mercado de ideias” em que os liberais acreditam, segundo o qual a verdade acabaria por emergir do debate, deve ser visto com alguma prudência.
Entre intelectuais, onde errar não tem custo, o mais provável é ninguém aprender com ninguém.
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