Neste verão, um grupo de executivos apresentou um plano de negócios a Anthony Scaramucci, o financista de Wall Street e ex-assessor de curta duração do presidente Donald Trump.
Eles queriam que Scaramucci se juntasse a uma empresa de capital aberto com uma estratégia peculiar: acumular enormes quantidades de criptomoedas para tornar seu negócio mais atraente para investidores.
“De fato, não precisaram me convencer. Foi uma conversa bastante fácil”, disse Scaramucci, que logo foi convidado para ser consultor de três companhias pouco conhecidas, cada qual com um plano semelhante.
O entusiasmo não durou muito. O mercado de criptomoedas colapsou neste desde setembro, fazendo com que as ações das três empresas de Scaramucci caíssem. A que teve o pior desempenho despencou mais de 80%.
Os negócios faziam parte de uma atividade frenética com criptomoedas impulsionada por Trump, que transformou o mundo antes obscuro do dinheiro digital em uma grande força na economia global. Declarando-se o primeiro “presidente cripto”, Trump encerrou uma repressão regulatória que havia sobre as companhias de criptomoedas, promoveu investimentos em dinheiro virtual a partir do Salão Oval, sancionou uma legislação pró-criptomoedas e até lançou uma “memecoin” chamada $TRUMP.
Agora, as consequências dessa defesa enfática estão ficando evidentes.
Uma série de empreendimentos em novas criptomoedas surgiu este ano, expondo mais pessoas ao mundo volátil das moedas virtuais. Mais de 250 empresas de capital aberto estão estocando esses ativos digitais cujos preços flutuam como ações, títulos ou outros investimentos.
Um punhado de companhias começou a oferecer produtos que facilitam a incorporação de criptomoedas em contas de corretagem e planos de aposentadoria. E executivos do setor apresentaram aos reguladores um plano para oferecer moedas que representam ações de empresas de capital aberto, que seriam negociadas em uma versão do mercado de ações movida a criptomoedas.
A corrida pela experimentação já começou a cobrar seu preço. As principais criptomoedas despencaram nos últimos dois meses, arrastando para a ruína as companhias que haviam acumulado esses ativos. Outras novas iniciativas passaram a receber alertas de economistas e reguladores, que apontam riscos crescentes no setor.
No centro das preocupações está a expansão do endividamento. Até o outono do hemisfério norte, empresas de capital aberto haviam contraído empréstimos vultosos para comprar criptomoedas. Além disso, investidores tinham apostado mais de US$ 200 bilhões nos preços futuros desses ativos —tipo de operação frequentemente financiado com dinheiro emprestado, capaz de gerar ganhos expressivos, mas também perdas devastadoras.
As ofertas mais recentes dessa indústria também estreitaram os vínculos entre as criptomoedas, o mercado de ações e outras áreas do sistema financeiro, ampliando o risco de uma reação em cadeia que leve uma crise do dinheiro virtual a se espalhar pela economia em geral.
“A linha divisória entre apostar, especular e investir desapareceu parcialmente. Para mim, isso é o mais preocupante”, afirmou Timothy Massad, que atuou como secretário adjunto do Departamento do Tesouro para a estabilidade financeira depois da recessão de 2008.
Karoline Leavitt, secretária de imprensa da Casa Branca, declarou que Trump está transformando os Estados Unidos “na capital mundial das criptomoedas, impulsionando a inovação e as oportunidades econômicas para todos os americanos”.
Segundo executivos do setor de criptomoedas, os novos empreendimentos mostram o potencial da tecnologia para reformular elementos ultrapassados do sistema financeiro. Descreveram a volatilidade do mercado como uma fonte de lucros potenciais.
“É um risco maior, mas também uma recompensa potencialmente maior. O que nossa empresa faz é levar essas oportunidades de investimento a mais pessoas”, disse Duncan Moir, presidente da 21Shares, que lança produtos financeiros para facilitar o investimento em criptomoedas.
A experimentação floresceu em um cenário regulatório que nunca foi tão favorável às companhias de criptomoedas. Depois de anos lutando contra o setor nos tribunais, a Comissão de Valores Mobiliários (SEC, sigla em inglês) criou, em janeiro, uma força-tarefa para as moedas digitais que promoveu dezenas de reuniões com empresas que buscam novas regras ou aprovação para oferecer novos produtos.
Um porta-voz da SEC anunciou que a agência está trabalhando para “garantir que os investidores tenham dados confiáveis para tomar decisões bem fundamentadas”.
Muitos desses novos tipos de negócios têm alguma conexão com o número crescente de companhias de criptomoedas da família Trump, responsável por obscurecer a linha divisória entre o comércio e o governo.
Prestes a entrarmos no verão (inverno no Brasil), os líderes da World Liberty Financial, startup de criptomoedas de Trump, divulgaram que estavam se juntando ao conselho da ALT5 Sigma, empresa pública que já administrou um negócio de reciclagem.
Agora, ela planejava levantar US$ 1,5 bilhão para comprar moedas digitais.
O DILÚVIO
Os entusiastas das criptomoedas criaram um nome para a era de risco e entusiasmo inaugurada pelo novo governo Trump: “Verão DAT”.
Uma DAT (sigla em inglês de distributed asset trust, empresa de tesouraria de ativos digitais) é uma firma de capital aberto cujo objetivo é adquirir o maior volume possível de criptomoedas. Pouco menos da metade dessas novas companhias concentrou suas compras em bitcoin, a criptomoeda mais conhecida. Dezenas de outras, porém, anunciaram planos para acumular moedas menos consolidadas, como a dogecoin, segundo a Architect Partners, consultoria especializada em criptomoedas.
Os empreendimentos costumam seguir um manual simples. Um grupo de executivos identifica uma empresa pouco conhecida —uma fabricante de brinquedos, por exemplo— que já negocia nos mercados públicos e está interessada em construir um estoque de criptomoedas. O grupo fecha um acordo com a companhia e arrecada milhões de dólares de investidores ricos. Em seguida, usa os fundos para comprar moedas digitais.
O objetivo é expor mais pessoas às criptomoedas, permitindo que comprem ações tradicionais que imitam o preço de uma moeda digital. É uma estratégia potencialmente lucrativa. Alguns fundos de investimento e outros gestores financeiros têm relutado em comprar criptomoedas diretamente, em parte porque pode ser complexo e caro armazená-las, e elas muitas vezes são alvo de ladrões e hackers.
Ao investir em uma DAT, um gestor financeiro pode terceirizar essa logística. Mas as DATs também se mostraram arriscadas. Muitas foram lançadas rapidamente ou foram administradas por executivos com pouca experiência na gestão de companhias de capital aberto. Coletivamente, essas empresas anunciaram planos de tomar empréstimos de mais de US$ 20 bilhões para comprar criptomoedas, de acordo com a Architect Partners.
“A alavancagem é o que desencadeia as crises financeiras. E está sendo criada uma alavancagem imensa no setor”, disse Corey Frayer, ex-consultor de criptomoedas da SEC.
Algumas companhias já estão enfrentando dificuldades ou crises de gestão, causando prejuízos aos investidores.
A Forward Industries, empresa de tesouraria que estocou uma moeda chamada solana, viu o preço de suas ações disparar em setembro para quase US$ 40 por título, depois de levantar mais de US$ 1,6 bilhão em capital de investidores privados.
Entre eles estava Allan Teh, de Miami, que investe em nome de um family office e colocou US$ 2,5 milhões na Forward este ano. “Todo mundo achava que a estratégia funcionaria —que o ativo continuaria subindo”, comentou Teh.
Então, o mercado caiu, levando as ações da Forward a um valor baixo, que chegou este mês a US$ 7. A companhia anunciou o plano de gastar até US$ 1 bilhão nos próximos dois anos para comprar as próprias ações, mas a medida não conseguiu conter a queda dos preços.
“A música parou. Agora estou me perguntando: vou conseguir sair dessa? Qual vai ser o tamanho da minha perda com isso?”, afirmou Teh, que perdeu cerca de US$ 1,5 milhão. A Forward se recusou a comentar.
O surgimento das DATs colocou a SEC em alerta. “Há preocupações óbvias. Estamos monitorando”, disse Paul Atkins, presidente da agência, em entrevista concedida durante uma conferência sobre criptomoedas em Miami no mês passado.
Mas esse novo canto do mundo das criptomoedas tem um apoiador poderoso: a família Trump.
Em agosto, a World Liberty Financial anunciou que seus fundadores, incluindo o filho do presidente, Eric Trump, se juntariam ao conselho da ALT5 Sigma, que planejava acumular WLFI, moeda criada pela World Liberty. (Eric Trump agora está listado como consultor estratégico e observador.)
O empreendimento parecia pronto para gerar lucros imediatos para os Trump. De acordo com um contrato de receita publicado no site da World Liberty, uma entidade empresarial da família Trump recebe uma parte dos lucros toda vez que as moedas WLFI mudam de mãos.
Desde então, a ALT5 Sigma enfrenta dificuldades. A companhia revelou em agosto que um executivo de uma subsidiária fora considerado criminalmente responsável por lavagem de dinheiro em Ruanda e que o conselho estava analisando outros assuntos “que não haviam sido divulgados anteriormente”. Logo, a ALT5 Sigma anunciou que estava suspendendo seu diretor-executivo e rompendo relações com outros dois altos funcionários.
O preço de suas ações caiu 85% desde agosto. Mesmo assim, um porta-voz da ALT5 Sigma declarou que a empresa continua “animada com nosso futuro”.
QUEDA RELÂMPAGO
Grande parte da turbulência recente das criptomoedas pode ser atribuída a uma única noite em outubro.Impulsionado pelo apoio de Donald Trump, o mercado de criptomoedas cresceu durante a maior parte deste ano. Mas, em 10 de outubro, o bitcoin e o ether despencaram, bem como dezenas de outras moedas.
Foi um “flash crash”, ou uma queda relâmpago.
A causa imediata foi o anúncio de Trump de que imporia uma nova tarifa à China, o que abalou a economia global. Mas o dano aos preços das criptomoedas foi especialmente grave em razão do montante de empréstimos que impulsionava o mercado.
Nas plataformas de criptomoedas, os negociantes podem usar seus ativos como garantia para sacar dinheiro ou pedir empréstimos para fazer apostas ainda maiores em moedas digitais. No mundo inteiro, esses empréstimos baseados em criptomoedas aumentaram US$ 20 bilhões apenas no terceiro trimestre, atingindo um novo pico de US$ 74 bilhões, segundo a Galaxy Research, provedora de dados sobre criptomoedas.
Em geral, grande parte das negociações de criptomoedas mais arriscadas é feita no exterior. Mas, em julho, a Coinbase, a maior bolsa dos EUA, divulgou que começaria a oferecer uma ferramenta de investimento que permitiria aos negociantes tomar emprestado até dez vezes o valor de seus ativos para apostar nos preços futuros do bitcoin e do ether. A Coinbase lançou o produto depois que os reguladores federais revogaram as determinações que restringiam esse tipo de empréstimo nos Estados Unidos.
A queda de outubro não causou o tipo de catástrofe que, em 2022, devastou o setor. Naquela ocasião, uma série de grandes empresas de criptomoedas faliu. Mas o colapso recente ofereceu uma prévia do tipo de crise que pode atingir o mundo das criptomoedas.
Por sua natureza, os empréstimos aceleram as perdas quando o mercado entra em recessão, porque forçam as Bolsas a vender as garantias dos clientes —processo conhecido como liquidação, que muitas vezes faz com que os preços caiam ainda mais.
No mundo todo, pelo menos US$ 19 bilhões em apostas em criptomoedas alavancadas foram liquidados em dez de outubro, afetando 1,6 milhão de negociantes (traders), segundo a CoinGlass, firma de rastreamento de dados do setor. A liquidação se concentrou em corretoras estrangeiras como a Binance, a OKX e a Bybit.
A queda causou um surto de transações, e alguns traders enfrentaram problemas técnicos ao tentar movimentar fundos nas corretoras principais. A Coinbase disse estar ciente de que alguns clientes “podem estar enfrentando latência ou desempenho prejudicado ao fazer transações”.
Derek Bartron, desenvolvedor de software e investidor em criptomoedas no Tennessee, contou que sua conta na Coinbase foi congelada. “Se eu quisesse sair de uma posição, não poderia. Foi como se a Coinbase tivesse praticamente impedido as pessoas de salvar seus fundos, e tivemos de suportar a montanha-russa”.
No total, Bartron perdeu cerca de US$ 50 mil em criptomoedas nos dias seguintes ao colapso, em parte porque não conseguiu vender seus ativos quando queria.
Uma porta-voz da Coinbase afirmou que a empresa oferece ferramentas automatizadas para gerenciar riscos. “Elas funcionaram sem problemas, e nossas bolsas permaneceram operacionais durante todo o incidente.”
Um porta-voz da Binance reconheceu que a Bolsa “enfrentou problemas técnicos como resultado do aumento significativo no tráfego” e declarou que medidas haviam sido tomadas para compensar os usuários.
A EXPERIÊNCIA
Em uma noite do verão (inverno no Brasil) passado, os empreendedores de criptomoedas Chris Yin e Teddy Pornprinya chegaram ao Centro Kennedy, em Washington, para uma recepção formal.
Era um evento de alto nível. Yin vestia um smoking que havia comprado na noite anterior. Apresentou-se ao vice-presidente JD Vance, que é conhecido por ser um ex-investidor do Vale do Silício. Depois, Yin e Pornprinya conversaram com o secretário do Tesouro, Scott Bessent, ex-gerente de fundos de cobertura. E posaram para fotos com Trump, que fez com o dedo o sinal de positivo.
Yin e Pornprinya estavam preparando o terreno para outro empreendimento audacioso que o setor lançou este ano. Queriam estender a tecnologia subjacente às criptomoedas a outros tipos de finanças.
Durante meses, a startup deles, Plume, buscou permissão dos reguladores dos EUA para oferecer uma plataforma online em que os clientes pudessem comprar moedas digitais que representam ações de algo no mundo real —uma empresa, uma fazenda, até mesmo um poço de petróleo.
No exterior, os clientes da Plume podem comprar ações desses tipos de produtos e negociá-las como outras moedas. Mas o serviço, conhecido como “tokenização”, ocupa uma área jurídica cinzenta nos Estados Unidos, onde leis de valores mobiliários com décadas de existência impõem regras rígidas a qualquer pessoa que venda ações de qualquer coisa. O objetivo dessas normas é proteger os investidores, exigindo que os emissores de títulos forneçam informações detalhadas.
Este ano, a tokenização se tornou uma das ideias mais bem aceitas no mundo das criptomoedas. Executivos do setor argumentam que as “ações tokenizadas” tornariam a negociação de ações mais rápida e eficiente, criando um mercado 24 horas por dia, sete dias por semana, no qual as ações mudariam constantemente de mãos no mundo inteiro. A Kraken, uma das maiores bolsas dos EUA, já oferece um mercado de ações baseado em criptomoedas para seus clientes no exterior.
No mundo das criptomoedas, as transações são registradas em um livro-razão público, tornando-o mais transparente do que as finanças tradicionais, de acordo com executivos do setor. “É rastreável e auditável —o oposto do risco”, comentou Arjun Sethi, diretor-executivo da Kraken.
Folha Mercado
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Representantes da Kraken e da Coinbase se reuniram com a SEC com o propósito de discutir regras para ativos tokenizados, enquanto a Plume busca um caminho legal que lhe permita expandir suas operações nos Estados Unidos.
Mas a corrida para lançar esses produtos tem preocupado reguladores atuais e antigos, bem como executivos poderosos do setor financeiro tradicional.
Em setembro, economistas do Sistema de Reserva Federal argumentaram que a tokenização poderia repassar os choques financeiros das criptomoedas para a economia em geral e “minar a capacidade dos formuladores de políticas de preservar a integridade dos sistemas de pagamentos, sobretudo em tempos de crise”.
Atkins, presidente da SEC, manifestou entusiasmo com as ações tokenizadas, descrevendo-as como um grande avanço tecnológico. “A comissão tem ampla discricionariedade sob as leis de valores mobiliários para acomodar o setor de criptomoedas, e pretendo fazer isso”, declarou em uma mesa-redonda do setor sobre tokenização em maio.
Yin e Pornprinya têm lançado mão de várias estratégias para posicionar sua empresa de forma favorável. Reuniram-se com a força-tarefa de criptomoedas da SEC em maio, contribuíram com um gráfico para um relatório da Casa Branca sobre as moedas digitais e inauguraram a sede da Plume nos EUA, no 77º andar do Empire State Building, em Nova York.
Na recepção formal em Washington, os assessores de Trump pareceram receptivos aos fundadores. “Conheciam a Plume. Todos eles sabiam da nossa existência”, comentou Pornprinya.
Algumas semanas depois, a Plume anunciou outra conexão potencialmente útil: uma parceria comercial com a World Liberty, a companhia de criptomoedas dos Trump.


