Os gastos sem precedentes do Qatar e da Arábia Saudita no mundo do futebol na última década lhes conferiram influência, atenção e acesso que poucas outras nações podem igualar.
Pela primeira vez, parece que isso também teve um efeito nos acontecimentos em campo. As seleções nacionais dos dois países garantiram vagas na Copa do Mundo de 2026, em outubro, depois que a entidade máxima do futebol na Ásia —que recebe generosos investimentos dos dois países do Golfo Pérsico— alterou as regras de qualificação para lhes conceder a vantagem de jogar em casa, dias extras de descanso e acesso a mais ingressos para os torcedores.
As medidas enfureceram os adversários e trouxeram à tona uma nova discussão sobre como o poder funciona no topo do futebol mundial.
“Simplesmente não consigo entender”, disse Carlos Queiroz, técnico da seleção de Omã, que empatou sem gols com o Qatar em outubro, em Doha. “Estou, no entanto, absolutamente convencido de que esse formato de repescagem foi o pior serviço que a direção do futebol poderia ter prestado à sua própria credibilidade.”
A federação de futebol do Qatar, cuja única participação anterior em Copas do Mundo não foi por meio das eliminatórias, mas sim como país-sede do torneio, recusou-se a comentar. A Confederação Asiática de Futebol e a federação de futebol da Arábia Saudita não responderam aos pedidos de comentários.
Os gastos das duas nações do Golfo Pérsico têm repetidamente colocado em xeque a credibilidade do futebol, particularmente depois que a Fifa, seu órgão regulador global, concedeu em 2010 ao pequeno e rico em gás Qatar o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022 em um processo de licitação amplamente considerado corrupto. O Qatar nega as acusações. A indignação aumentou ainda mais quando a Fifa ignorou suas próprias regras e concedeu o torneio de 2034 à Arábia Saudita sem licitação.
Nações ricas ou líderes poderosos frequentemente usam o esporte para melhorar sua reputação ou garantir influência. O presidente Vladimir Putin, da Rússia, presidiu os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, que testemunharam o pior escândalo de doping da história do esporte, e depois ocupou o centro das atenções na Copa do Mundo que seu país sediou quatro anos depois.
Autoridades sauditas argumentam que estão investindo no esporte para diversificar sua economia dependente do petróleo e atender ao entusiasmo da população jovem pelo futebol. A seleção nacional saudita já se classificou para a Copa do Mundo sete vezes.
“A liderança saudita quer que o país ocupe o lugar que lhe cabe entre as principais potências do esporte mundial, e sua motivação é impulsionada por um crescente orgulho nacional e pela convicção de que a Arábia Saudita se tornou uma grande potência”, disse Neil Quilliam, especialista em países do Golfo Pérsico da Chatham House, uma organização de pesquisa sediada em Londres.
No futebol asiático, as decisões têm se inclinado cada vez mais para um lado. A entidade que rege o futebol na região, conhecida como AFC, flexibilizou as regras de elegibilidade de jogadores para permitir a entrada de mais estrangeiros em clubes, depois que os times começaram a contratar estrelas internacionais como Cristiano Ronaldo com contratos lucrativos. A AFC também mudou o formato de sua principal competição para que todas as partidas da fase final fossem disputadas na Arábia Saudita, dando vantagem de jogar em casa aos times do reino.
Sua gestão da qualificação para a Copa do Mundo, no entanto, é excepcional.
A AFC garantiu oito vagas para seus membros na Copa do Mundo do ano que vem, que será co-organizada pelos Estados Unidos, Canadá e México. A federação estabeleceu a estrutura de qualificação para seus 47 países membros um ano antes do início das partidas, em 2023.
O formato complexo permitia alguns caminhos para a Copa do Mundo. Em uma das rotas, o Iraque e os Emirados Árabes Unidos garantiriam o direito de sediar o torneio e o primeiro lugar na fase final, com base em seus desempenhos nas eliminatórias anteriores. Nessa fase final, seis equipes seriam divididas em dois grupos, e o vencedor de cada grupo garantiria uma vaga na Copa do Mundo.
Mas a federação mudou repentinamente de rumo em março. Em vez de conceder o direito de sediar o evento às equipes do Iraque e dos Emirados Árabes Unidos, instituiu um processo de licitação baseado em “princípios de justiça”, segundo uma carta da federação aos países membros analisada pelo jornal The New York Times.
Vários países apresentaram candidaturas. Em junho, a federação asiática atribuiu o direito de sediar o torneio não ao Iraque e aos Emirados Árabes Unidos, mas à Arábia Saudita e ao Qatar, sem qualquer explicação. Ambos também receberam a classificação de cabeça de chave. O Qatar conquistou essa posição por mérito, mas a Arábia Saudita não; o Iraque estava melhor classificado. Os países com melhor classificação tiveram o dobro de dias de descanso entre as partidas em comparação com os adversários.
A discrepância no tempo de descanso foi “a questão mais crítica”, disse Queiroz, que treinou algumas das maiores equipes de futebol do mundo, incluindo Manchester United e Real Madrid.
“Jesus disse certa vez: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’”, acrescentou. “Mas, neste caso, eles sabiam exatamente o que estavam fazendo.”
Federações nacionais, equipes rivais e torcedores expressaram fúria.
“A divulgação do processo de seleção e dos prazos contribuiria para fortalecer a confiança entre as federações e manter o princípio da igualdade de oportunidades”, escreveu a seleção iraquiana em comunicado. Os Emirados Árabes Unidos também enviaram cartas de reclamação.
A federação asiática nunca respondeu.
Em sua partida de qualificação contra o Qatar, em outubro, a seleção dos Emirados Árabes Unidos precisava apenas de um empate para garantir uma vaga na Copa do Mundo. Mas teve dificuldades para se recuperar após sair atrás no placar, enfrentando, entre outros obstáculos, uma torcida catariana agressiva, que interrompeu os minutos finais do jogo atirando objetos no campo. O capitão do Qatar, Akram Afif, admitiu posteriormente que havia incitado a torcida a se comportar mal, “apenas para ganhar tempo, naturalmente”, ressaltando a vantagem de jogar em casa.
O Qatar sediou a partida em um estádio pequeno, em vez de um dos maiores que havia construído para a Copa do Mundo de 2022, limitando a presença de torcedores dos Emirados Árabes Unidos. A população dos Emirados Árabes Unidos é mais de três vezes maior que a do Qatar.
A frustração entre o pequeno grupo de torcedores dos Emirados Árabes Unidos culminou em uma confusão que exigiu a intervenção dos seguranças do estádio. E em um evento luxuoso da AFC em Riad, na Arábia Saudita, em outubro, uma delegação dos Emirados Árabes Unidos se recusou a receber um prêmio no palco.
Não ficou claro por que a federação asiática de futebol, liderada por um membro da família real do Bahrein, o xeque Salman bin Ibrahim Al Khalifa, não utilizou locais neutros para os jogos, como algumas das equipes participantes haviam solicitado. A sede da organização, na Malásia, já havia servido como sede neutra anteriormente.
A mudança repentina nas regras é o exemplo mais recente de como os dirigentes do futebol recuaram em relação às promessas de maior transparência após o escândalo global de corrupção de 2015, afirmou Miguel Maduro, ex-chefe de governança da Fifa sob a presidência de Gianni Infantino.
“Eles estão estabelecendo um conjunto de regras para esse grupo de participantes que lhes seja conveniente?”, questionou Maduro. Ele sugeriu que a Fifa poderia ter intervido, já que o processo de qualificação administrado pela AFC era, em última análise, para a Copa do Mundo da Fifa. Em resposta a um pedido de comentário, um representante da Fifa compartilhou um guia de 54 páginas com o regulamento da competição.
A Arábia Saudita e o Qatar também têm buscado influência junto à Fifa. O Qatar forneceu a Infantino uma luxuosa mansão antes da Copa do Mundo de 2022, e ele continua tendo acesso irrestrito a um jato particular estatal.
A Fifa recebeu milhões de dólares em apoio saudita, e Infantino também visitou Riad com frequência. O líder de facto da Arábia Saudita, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, recebeu Infantino em seu palácio oficial e em eventos esportivos e empresariais. Infantino participou de uma conferência de investimentos esta semana, onde discursou ao lado de líderes mundiais em um painel de discussão sobre se a humanidade estava caminhando na “direção certa”.
O presidente da Fifa provou ser um aliado crucial para o reino. Ele ajudou a promover uma proposta saudita para realizar a Copa do Mundo a cada dois anos, em vez de a cada quatro, proposta que acabou não prosperando. A Fifa também flexibilizou suas próprias regras ao conceder ao reino o direito de sediar o torneio de 2034.
Infantino também tem se manifestado abertamente em apoio aos esforços do príncipe herdeiro para reorientar radicalmente a economia e a cultura do país. Um dos principais pilares tem sido o investimento no esporte, transformando a Arábia Saudita no maior comprador mundial de eventos esportivos, direitos e talentos.
Iraque e Emirados Árabes Unidos têm uma última chance de se classificar para a Copa do Mundo. A equipe que vencer o confronto de dois jogos avança para a próxima fase, onde disputará mais uma partida por uma vaga no torneio. Nenhuma das equipes terá vantagem; cada uma jogará uma partida em casa.
				

