Todas as manhãs, mesmo já com mais de 90 anos, a advogada Gilcéria de Oliveira, conhecida como Ceres, mantinha o mesmo ritual: passava seu perfume, se arrumava ouvindo as notícias e seguia para o escritório.
Trabalhou até poucos meses antes de morrer, aos 93 anos —nos últimos anos, costumava dizer que pretendia se aposentar, só restavam alguns processos para finalizar; mas sempre arrastava a decisão para frente.
Nascida em Ribeirópolis, em Sergipe, mudou-se para o interior de São Paulo com a família. O pai, que era produtor de algodão, viu no Sudeste a possibilidade de crescer os negócios.
A contragosto do pai, a irmã mais nova passou na faculdade e foi para a capital estudar sociologia, levando Gilcéria com ela. Na metrópole, ela entrou na Faculdade de Direto do Largo São Francisco, na qual se formou.
“Ela tinha um senso de justiça e igualdade que aparecia em tudo que ela falava. Esses valores sempre foram muito importantes para ela”, diz a sobrinha-neta Verônica Rosa.
Durante a ditadura militar, prestou assistência jurídica a pessoas perseguidas e encarceradas, ajudando algumas a se esconder e fugir. Entre elas, esteve o padre José Oscar Beozzo. Quando ele teve a prisão decretada, ela conseguiu garantir que viajasse do Rio de Janeiro a São Paulo, de onde partiu para o exílio na Europa.
Após a morte de Gilcéria, Beozzo escreveu que ela “sabia ouvir quem precisasse de uma orientação e esclarecimento”. E relembrou que a advogada, durante a ditadura militar, prestou igualmente constante socorro com raro destemor e valentia, “apoiada sempre por sua fé, que se desdobrava em gestos de solidariedade e teimoso esperançar”.
Após o período da ditadura, trabalhou de forma voluntária em organizações como o Centro Oscar Romero, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e fundações voltadas à defesa dos direitos humanos e do direito do negro.
Atuou por cerca de dez anos em uma fundação ligada à luta antirracista, sendo advogada voluntária da instituição e realizando trabalhos como inventários, incluindo o do operário Santo Dias, morto durante a ditadura.
Ceres gostava de ler biografias e obras de autores latino-americanos, como Alejo Carpentier, e também acompanhava notícias. Ainda viajou para diversos países da Europa, América Latina e Oriente Médio, combinando essas viagens com a fé católica.
Gilcéria morreu no dia 23 de agosto. Deixa a irmã Zelda, sobrinhos e sobrinhos-netos, além de amigos que conviveram com sua atuação profissional e militante.
coluna.obituario@grupofolha.com.br
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