Diogo Mainardi percorre via-sacra de 'Morte em Veneza' - 03/10/2025 - João Pereira Coutinho

Diogo Mainardi percorre via-sacra de ‘Morte em Veneza’ – 03/10/2025 – João Pereira Coutinho

Atenção, atenção: um teste rápido de literatura. Preparado, leitor? Preparada, leitora?

A história se passa em Veneza. Um escritor de meia-idade, avesso ao sentimentalismo e devoto da racionalidade apolínea, se vê arrebatado pela presença da beleza em estado puro. Esse encontro o obriga a repensar sua vida, seu legado e suas limitações como criador. Ao fundo, paira sobre a cidade uma epidemia, espalhando doença e morte. De que livro estamos falando?

Parabéns, leitor. Parabéns, leitora. Você acertou: trata-se de “Meus Mortos: Um Autorretrato” (Record), de Diogo Mainardi —uma “graphic novel” em que o autor persegue, com obsessão microscópica, a arte de Ticiano.

É também um dos livros do ano —e, no contexto da literatura brasileira, um desaforo brilhante no conteúdo e na forma.

Mas voltemos a Ticiano. É uma escolha certeira: nenhum pintor do Renascimento ousou tanto na cor – solta, vibrante, capaz de dar a cada personagem uma existência única.

Os quadros de Ticiano falam conosco. E “falar” aqui é literal: convocam o espectador para uma confissão íntima, obrigando cada um de nós a entrar no drama e na experiência retratados.

Não por acaso, a vitalidade da pintura de Ticiano marcou e dominou gigantes como Rubens, Rembrandt – e, já no nosso tempo, Lucian Freud, que também surge brevemente no livro. E quem pensa que a pintura de Freud é “realista” se engana: ela é profundamente subjetiva. O que Freud aprendeu com Ticiano foi justamente isso —trazer à superfície, nos rostos e nos corpos nus, a história interior de cada modelo.

Diogo Mainardi não poderia passar incólume a esse diálogo. E muito menos vivendo em Veneza, cidade de Ticiano e, ao mesmo tempo, a encarnação urbana da decadência e da finitude. Com a idade, a morte começa a nos intimar de perto —e não dá mais para fingir que não ouvimos.

No caso de Mainardi, foi a morte do pai, da mãe, do irmão —em poucos meses. Foi a morte que a Covid trouxe ao mundo, ceifando milhares, milhões. Sem falar da própria morte do autor, ou da consciência cada vez mais presente de que o assunto não é apenas teórico, como na juventude.

Além disso, e com a passagem dos anos, é mais difícil mentir quando você é dotado de sensibilidade e inteligência. Nossas falhas emergem sem máscara —o que fizemos, o que não fizemos. É aterrador e libertador em partes iguais. E, nas palavras de Mainardi e nas fotos de seu filho Nico, hilariante também: a consciência da nossa pequenez pode ser uma forma de salvação.

Nesse sentido, Diogo Mainardi é o oposto de Gustav Aschenbach, protagonista de uma novela que você provavelmente conhece: “Morte em Veneza”, de Thomas Mann.

Aschenbach, também escritor, vagando pela mesma cidade, é seduzido pela beleza do jovem Tadzio. Mas a história dele é, sobretudo, um aviso aos estetas do mundo.

Thomas Mann resume a armadilha em chave platônica: “Só a beleza é divina e, ao mesmo tempo, visível; por isso, é também o caminho do artista para o espírito”. Mas esse caminho “é cheio de perigos sedutores” – o maior deles, o risco de perder a própria vida e as conexões que nos sustentam.

“Meus Mortos” percorre a mesma via-sacra, mas chega a outro destino: humano, cético, irônico. Sem esperança nem medo, resta-nos carregar nossos mortos enquanto estamos vivos – como, um dia, os vivos nos carregarão.

E se esse fardo for levado com lágrimas de riso, haverá herança melhor?


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