Como é de conhecimento comum, o Rio de Janeiro foi palco da operação policial mais letal de sua história. Foram cerca de 121 mortos em uma ação concentrada em comunidades periféricas. E não demorou muito para que a tragédia se tornasse mais um palanque político.
Entre os que comemoraram o saldo de mortes da operação, está o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), autodeclarado cristão, que classificou o episódio como “a maior faxina da história do Rio de Janeiro”. Sua fala, longe de ser isolada, está inserida na difundida mentalidade de que matar bandidos, sobretudo os pobres, é não apenas justificável, mas desejável.
Entretanto, é curioso quando pessoas que se afirmam cristãs se curvam diante da morte alheia com tamanha empolgação. O mesmo credo que prega o amor aos inimigos e o valor sagrado da vida é rapidamente esquecido dependendo do contexto em que se encontra o cristão.
Isso não é apenas moralmente problemático, mas também interessante politicamente. O cristianismo, no Brasil recente, foi capturado por uma parte da população de uma forma diferente. Tornou-se símbolo de identidade política, embora, em muitos casos, esteja completamente ausente de ética. E agora, a morte também é usada como instrumento político. Ela serve para demonstrar força, sinalizar ação e tranquilizar o eleitorado com sede de justiça rápida.
Porém, o que se viu no Rio de Janeiro foi mais um grande espetáculo. A operação entrou, matou e saiu. A operação teve quatro vidas de policiais perdidas. E depois? Deixar o território novamente para os criminosos? Não houve a intenção de reconstrução do Estado naquele local, nem ocupação duradoura. Houve sangue e manchete. O recado não foi segurança. O recado foi propaganda eleitoral.
Enquanto isso, quem mora nesses territórios segue refém. Refém do tráfico e da milícia. Refém de políticos que se aproveitam da dor e da desordem para conquistar votos com promessas que não chegam às vielas.
Já no espectro ideológico oposto, uma parcela da esquerda, por sua vez, ainda está com significativa dificuldade para lidar com a complexidade do problema. Muitas vezes cai na armadilha de reduzir o debate a determinismos sociais. Como se denunciar a desigualdade bastasse para explicar (e, às vezes, desculpar) a violência. Mas quem vive nas favelas quer mais do que explicações. Eles querem paz, presença do Estado e justiça.
Apesar disso, é importante ter em mente que nenhum país que se pretende civilizado pode normalizar a matança. E nenhum discurso verdadeiramente cristão pode se orgulhar dela. “Felizes os que promovem a paz, pois serão chamados filhos de Deus”, dizia o homem da Galileia. Já li a Bíblia inteira três vezes e confesso que não lembro de ter encontrado no Novo Testamento ao menos um versículo que justifique o extermínio de pessoas.
É preciso recuperar a dignidade da vida humana como fundamento. E reconhecer que a segurança não virá com espetáculo. Ela virá com o Estado presente, políticas integradas e respeito ao cidadão. Mesmo aquele cidadão que mora onde a maioria não quer olhar.
O texto é uma homenagem à música “Todos estão surdos”, composta por Erasmo Carlos e Roberto Carlos, interpretada por Roberto Carlos.
  
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