Não se sentir parte da natureza pode explicar o fato de tantos evangélicos serem favoráveis ao afrouxamento das leis ambientais? Teria sido essa amnésia —da ligação vital entre fé e Criação— que fez a bancada evangélica votar, em sua maioria, a favor do PL da Devastação? Dizem que seguem a Bíblia, mas suas ações são coerentes?
Para judeus e cristãos, a vida de pessoas, animais e plantas é criada e preservada por Deus. “Deus viu que isso é bom”, repete o Gênesis a cada etapa da Criação. Tudo, inclusive a Terra, é propriedade d’Ele (Levítico 25.23). No entanto, noções distorcidas abriram espaço para devastações. Tornou-se senso comum a ideia de que o mandamento para “dominar sobre os animais” (Gênesis 1.26) significaria uma licença para aniquilar a natureza. A partir desse entendimento enganoso, ecologistas passaram a denunciar que a Bíblia fomenta destruição.
Todavia, há traduções que enfatizam que o mandamento é para “dominar com” os animais, como argumenta Lifschitz em A Hagadá de Gênesis 1, no sentido de compartilhar a vida com eles, garantindo condições para todos os viventes —ou seja, o ecossistema, em linguagem atual. Essa orientação se une ao mandamento de “cultivar e guardar” o Jardim da Criação (Gênesis 2.15).
Na sequência, Deus manda preservar as matrizes como condição para a vida prosperar (Deuteronômio 22.1); levantar os animais caídos, inclusive os dos inimigos (Êxodo 23.4-5); não destruir as árvores das terras conquistadas (Deuteronômio 20.19), entre outras orientações. Plantas e animais não são inimigos do progresso, como tenta nos convencer a nossa “avançada” civilização.
A Bíblia menciona 865 vezes a palavra “Terra”, demonstrando sua relevância. Como expressa o pastor Werner Fuchs: “Deus é o maior ambientalista. E Jesus, o melhor jardineiro. Já cuidam da natureza e querem nos envolver na justiça socioambiental”, afirma no livro “Sementes da Esperança”.
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Todos esses conceitos bíblicos estão em flagrante oposição ao que foi aprovado no Congresso Nacional com o apoio de parlamentares que se dizem seguidores de Jesus. Quando o PL da Devastação voltar às deliberações, será que os evangélicos serão coerentes com sua afirmação de seguir a Bíblia? Será que lembrarão do seu papel como guardiões da natureza criada por Deus?
Que se escute o que o apóstolo Paulo chamou de “gemido da Criação”, que aguarda as atitudes dos cristãos redimidos (Romanos 8.22). A natureza espera ser protegida por aqueles que valorizam o amor de Deus pela vida de todos os seres e o mandamento dado aos humanos para seu cuidado.
A proteção oferecida por evangélicos que compreenderam esse papel é inspiradora de novas ações. A coletânea organizada por Ginia C. Bomtempo, “Assim na Terra como no Céu”, reúne testemunhos de fé e cuidado com o planeta. Movimentos como o Renovar Nosso Mundo mostram as transformações que acontecem quando os textos bíblicos sobre a natureza são levados a sério. Os humanos —e os mais-que-humanos— revivem e agradecem. As próximas gerações também.
Davi Kopenawa expressa que o homem branco é um ser que esqueceu seu pertencimento ao mundo natural e espiritual, como relata em “A queda do Céu”. Com isso, tornou-se acumulador de objetos, mas empobrecido em suas relações e em sua compreensão do que vale a pena preservar.
Como dizem Kopenawa e Ailton Krenak, esquecer que somos guardiões da Terra —e não seus proprietários— traz destruição para todos os seres que compartilham o presente e o futuro. E, segundo a amada Bíblia, isso tem consequências eternas: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Marcos 8.36). O livro do Apocalipse anuncia que a ira de Deus virá para julgar e destruir os que foram infiéis, entre eles “os que destroem a terra” (Ap 11.18). Vale a pena correr o risco de se expor à ira divina por toda a eternidade?
Seria a fé professada na esfera pública apenas “de mentirinha”, para ganhar vantagens e votos na dimensão terrena? Cabe lembrar o final da parábola do rico insensato: “Louco! Esta noite pedirão a tua alma, e o que tens preparado, para quem será?” (Lucas 12.20).
O artista gráfico e teólogo Marcelo Saldanha desenhou esta “árvore de memórias bíblicas sobre a natureza”, na esperança de que ajude a lembrar nosso papel na Criação.
Afinal, lembrar dia e noite das palavras da Bíblia faz a vida crescer com vigor, conforme o Salmo 1: “como uma árvore plantada à beira de riachos”.