“Você não pode deixar o foguinho apagar. É como um filho”, convoca uma adolescente influencer no TikTok. “Tem gente que tá deixando o foguinho apagar… Como é que pode isso?”, questiona.
O foguinho, recurso do TikTok que se tornou popular neste ano, é apontado por especialistas como um forte elemento para fomentar o vício de crianças e adolescentes no aplicativo. Esse é um dos apontamentos da representação encaminhada na semana passada ao Ministério Público Federal (MPF) contra o TikTok pelo Instituto Alana, ONG de defesa da infância e da adolescência.
Com 81 páginas, o documento, ao qual a Folha teve acesso, traz um detalhado levantamento com pesquisas sobre como o design dessa rede social estimula o uso compulsivo e gera uma série de prejuízos à saúde física e mental, especialmente dos mais novos.
Para quem não conhece, o foguinho do TikTok funciona assim: o usuário solicita, por mensagem, que um amigo o ajude a manter aceso um foguinho. Quanto mais mensagens e interações houver entre os dois, mais o foguinho cresce, brilha, muda de cor. Quando o fogo está forte, surgem pets virtuais e, para mantê-los vivos e felizes, é preciso haver troca frequente de mensagens. Um dia sem interagir “congela o foguinho”, que pode sumir, e coloca “a vida” dos bichinhos virtuais em risco. Figuras “fofas”, elas choram se não há mensagens.
A Folha encontrou vários vídeos de influencers com adolescentes e crianças ensinando a manter o foguinho vivo. A plataforma foi procurada por meio da assessoria de imprensa na tarde de segunda (1º), mas não respondeu até a noite desta terça (2).
A representação do Alana ao MPF afirma que o recurso do foguinho gera pressão para que se utilize a plataforma com muita frequência, “criando uma sensação de obrigação”. Diz que o fato de o foguinho ser compartilhado entre duas pessoas faz com que o usuário possa se sentir cobrado e julgado pelo outro quando não interage, o que gera ansiedade e estimula a compulsão.
Citando estudos, o documento afirma que outras características do design do TikTok também contribuem para o vício. Entre elas estão a rolagem infinita, que reduz a percepção da passagem do tempo, a reprodução automática de vídeos (autoplay), o formato de vídeos curtos exibidos em tela cheia, o que aumenta a imersão e dificulta a interrupção, e um algoritmo altamente eficaz na retenção do usuário e no aumento do tempo de uso.
Uma série de dados mostra a disseminação do TikTok na infância e na adolescência. Até entre bebês. No Brasil, são 14% de usuários de 0 a 3 anos —esse uso tão precoce pode contribuir para o atraso na fala e para danos cognitivos permanentes, segundo pesquisas citadas pelo Alana. A proporção de usuários cresce com a idade (dados da pesquisa Panorama – Crianças e Smartphones 2024, citada na representação). De 10 a 12 anos, por exemplo, são 42%. De 13 a 16, o uso atinge 62%.
A representação defende que já há no país um arcabouço legal robusto para enquadrar o TikTok, mesmo antes de o ECA Digital entrar em vigor, em março –o novo marco legal, aprovado neste ano, reforça as medidas de proteção a crianças e adolescentes no ambiente online, com mais restrições às plataformas. Segundo o Alana, a atuação da rede social fere a proteção da infância e da adolescência determinada pela própria Constituição, pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), pelo Código de Defesa do Consumidor e pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
João Francisco Coelho, advogado do programa Criança e Consumo, do Alana, disse à Folha que o Ministério Público Federal instaurou um procedimento administrativo determinando que sejam monitoradas pelo órgão as medidas que as plataformas estão adotando para cumprir o ECA Digital.
O Alana solicita que a ByteDance Brasil, empresa responsável pelo TikTok no país, seja chamada pelo Ministério Público para esclarecer, entre outros pontos, os critérios de seus algoritmos e apresentar estudos internos sobre o impacto da plataforma em crianças e adolescentes.
Também pede que sejam adotadas medidas, “pecuniárias e não pecuniárias, para reparar os danos já causados” a esse público, “em valor proporcional aos danos causados”.
No ano passado, o governo federal exigiu que o TikTok criasse mecanismos para barrar o acesso de crianças. Embora, pelas regras oficiais da plataforma, só possam ser cadastrados usuários a partir dos 13 anos, não há ferramenta de comprovação da idade. Além disso, havia o acesso ao feed sem a necessidade de cadastro. A determinação foi feita pela ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados). O feed sem cadastro foi eliminado, mas a verificação de idade ainda não ocorre –e o ECA Digital torna esse controle obrigatório.


