“Não é mágica, porque mágica é truque, e truque é fraude.” É assim que o advogado Marcio Carvalho de Sá, dono do Time Holding Brasil, descreve um método utilizado para transmissão de bens sem pagamento do imposto sobre herança e doação, ou com redução significativa no seu valor.
A ampla divulgação do modelo pelas redes sociais chamou a atenção de auditores fiscais, e também de especialistas em planejamento sucessório, que classificam o sistema, conhecido como 3 holdings ou 3 células, como simulação e crime contra a ordem tributária.
Contribuintes que utilizaram o método nos últimos anos estão sendo notificados pelos fiscos estaduais para pagamento do ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação). Essas pessoas também correm o risco de cair na malha fina da Receita Federal.
O modelo de planejamento é vendido na internet até por pessoas que não são advogados nem contadores, o que despertou a atenção da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) pela possibilidade de exercício ilegal da profissão.
O método consiste na criação de uma estrutura com três empresas. Ao final do processo, os filhos se tornam proprietários da empresa destino, controladora da intermediária veículo, que por sua vez será dona da empresa cofre, onde estão guardados os bens dos pais. Estes podem manter o usufruto do patrimônio até a morte.
Nesse sistema, em vez de transmitir os bens diretamente aos filhos, os pais doam aos descendentes cotas da empresa destino, ou o dinheiro para que eles façam a aquisição destas.
Para que haja ganho tributário, essa doação é feita por um valor inferior ao dos bens que estão no cofre. Em alguns casos, abaixo da faixa de isenção do imposto, que varia de acordo com o estado.
“A manobra, embora sofisticada, é enquadrada como planejamento tributário abusivo e, portanto, irregular”, afirma a Secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul, a primeira a promover fiscalização exclusiva sobre o modelo. A meta é recuperar cerca de R$ 5 milhões.
Os contribuintes notificados pela Sefaz-RS têm até este domingo (31) para recolher o imposto devido antes que haja autuação. Depois, poderão sofrer penalidades que dobram o valor.
A Sefaz-RS afirma que a irregularidade se deve ao fato de que as empresas não foram criadas com propósito econômico, mas com “notório objetivo de transferir patrimônio através de uma engenharia societária que artificialmente reduz o valor dos bens” para pagar menos imposto.
São Paulo também realiza uma série de operações de combate à sonegação de ITCMD, tendo notificado alguns contribuintes que utilizaram esse sistema.
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“Esse tipo de situação é temerária, um planejamento difícil de prosperar. Falta substância econômica para dizer que isso foi feito da maneira mais tranquila possível”, afirma Roberto Justo, sócio do escritório Choaib, Paiva e Justo Advogados.
Hygoor Jorge Freire, advogado especialista em gestão patrimonial, classifica o método como simulação, com o uso de operações de compra e venda de empresas com objetivo único de pagar menos ou nenhum imposto. O mesmo se aplica a outros cursos de planejamento vendidos na internet, como “castelo invisível” e “AVJ (ajuste a valor justo)”. Ele diz que a única genialidade no negócio é o marketing para vendê-lo.
Freire afirma que o método se espalhou pela internet e que tem sido difícil combater a desinformação referente ao modelo. “Formou-se uma seita. Quando você faz uma live para debater isso tecnicamente, as pessoas entram e começam a te atacar.”
Ele recomenda que o contribuinte que fez esse tipo de planejamento pague o tributo antes de ser autuado.
Há também o risco de a Receita Federal tributar a diferença entre o valor dos bens e das cotas da empresa, o chamado ágio na subscrição, com alíquota de 34%, além da multa de até 100% do imposto.
Carlos Augusto Daniel Neto, ex-conselheiro do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) e sócio da Daniel & Diniz Advocacia Tributária, afirma que cada ato societário da operação pode até ser legal, mas o que importa é o resultado obtido pelo conjunto deles. “Essa compra por um valor muito inferior ao que valem de fato aqueles bens é uma doação disfarçada, uma simulação.”
Ele afirma que muitos desses profissionais não têm conhecimento sobre o que vendem e desconhecem o avanço da jurisprudência sobre simulação nas últimas décadas. “Se os tribunais fossem validar isso, seria melhor revogar o imposto. Ninguém vai pagar ITCMD se puder colocar os imóveis em uma empresa [cofre], constituir um ágio de subscrição gigante [na veículo] e vender a cota [da destino] pelo valor nominal.”
Em vídeo publicado na internet para comentar a operação do fisco gaúcho, o dono do Time Holding Brasil afirma que o grupo é responsável por 1.408 holdings criadas nos últimos 12 meses nesse modelo, ou R$ 12,5 bilhões em patrimônio.
Em conversa com a Folha, o advogado afirma ter conhecimento de seis clientes de membros do grupo notificados no RS. Todas as cartas da Sefaz receberam a resposta de que não houve nenhum tipo de fraude e que eles estão à disposição para prestar informações às autoridades. “Não há nenhum tipo de regularização a ser feita”, afirma.
Ele diz que a fiscalização no RS pode se basear no passo a passo divulgado gratuitamente na internet, sem os detalhes do seu curso. “Todas as notificações são assinadas pelo mesmo fiscal. O que ele fez foi ver vídeos na internet e falar que é fraude. Aquilo que chega à internet é muito superficial. Não é o que a gente ensina e treina.”
Carvalho de Sá diz que o modelo de 3 células não é uma criação do grupo, foi adotado e melhorado por eles, e que não há uma regra única patenteada. Também não descarta que profissionais de fora do time adotem estruturas que possam ser enquadradas como fraude.
A equipe é composta por 5.000 membros (70% de advogados, 10% de contadores e 20% de outros profissionais). Eles pagam anuidade para ter acesso a treinamento e troca de experiências. Não há cobrança por participação em negócios realizados.
Ele diz que o método é semelhante ao utilizado por bilionários para gerir suas participações em grandes empresas operacionais e repassar esses ativos aos seus descendentes, embora o 3 holdings utilize empresas que não têm atividade econômica.
Natalia Zimmermann, sócia do escritório Velloza Advogados Associados, diz ter recebido consulta sobre um planejamento semelhante e que o escritório se manifestou desfavoravelmente pelo risco de enquadramento como simulação, tanto pela receita estadual como pela federal.
“Acho temerário. Estão criando operações societárias que não têm fundamentação econômica e nem jurídica”, afirma. “É um planejamento muito arriscado. Em operação semelhante, orientamos o cliente a não fazer.”
Michel Siqueira, sócio do Vieira Rezende Advogados, afirma que esse tipo de planejamento contém fragilidades e, quando a estrutura é feita com único propósito de economia tributária, sem substância econômica ou outra razão negocial, pode ser vista como algo abusivo.
“Quando os atos formalmente dizem uma coisa, mas em essência têm outro objetivo, a autoridade fiscal pode alegar simulação, artificialidade ou abuso para desconsiderá-los.”
1ª etapa
Os pais abrem três empresas: cofre, veículos e destino
Usam bens, pelo valor de aquisição, para integralizar capital (pagar pelas cotas) da cofre
Cotas da cofre (valor de R$ 10 mi, por exemplo) são usadas para pagar pelas cotas da veículo (que valem R$ 100 mil, por exemplo)
Diferença entre valores é lançada como ágio na veículo
Situação: pais são donos da veículo, dona da cofre, que é dona dos bens
2ª etapa
Cotas da destino (que podem ter o mesmo valor da veículo) são doadas aos filhos
Valor do imposto recolhido é menor que na transferência direta dos bens
3ª etapa
Destino compra dos pais a veículo
Agora, filhos são proprietários da empresa destino, que é dona da veículo, que por sua vez é dona da cofre, na qual estão os bens que eram dos pais
Riscos:
Cobrança de ITCMD pelo estado com multa de até 100% do tributo
Tributação do ágio na subscrição das cotas (34% de IRPJ/CSLL) com multa de até 100%
Tributação com ITBI na transferência de imóvel para a cofre (se a holding exercer atividades imobiliárias)
Todos os envolvidos podem responder por crime contra a ordem tributária