Você é uma raposa ou um ouriço? Não é insulto. É conversa séria sobre dois tipos humanos que Isaiah Berlin imortalizou no ensaio “O Ouriço e a Raposa”. O ensaio, um dos mais brilhantes do século 20, acaba de ganhar edição pela Civilização Brasileira.
Resumidamente, o ensaio parte de uma frase do poeta Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.”
É possível interpretar a sentença de várias formas. Berlin a viu como a definição perfeita de monistas (ouriços) e pluralistas (raposas).
Há aqueles que procuram um sistema, uma explicação única, um princípio universal capaz de abarcar a diversidade da experiência. São os monistas. São os ouriços.
As raposas, pelo contrário, buscam coisas diversas, às vezes contraditórias, sem esperar que uma teoria explique ou antecipe essa diversidade.
Dante, Hegel ou Dostoiévski eram ouriços. Montaigne, Shakespeare ou Balzac eram raposas. E Tolstói?
O caso de Tolstói, que ocupa todo o ensaio, é distinto. Eis alguém que era naturalmente uma raposa nas suas capacidades criativas e imaginativas —basta ler “Guerra e Paz”— mas que acreditava, ou desejava, ser um ouriço.
Para ele, a história não podia ser aprisionada em sistemas ou teorias gerais, porque a experiência é múltipla, individual, subjetiva —e as forças que determinam a conduta de homens ou sociedades estão além do nosso limitado entendimento.
Além disso, que faz o historiador quando reconstitui o passado? Seleciona, exclui, deixa-se seduzir pelos fatos que melhor encaixam na sua ideologia. Isso vale tanto para as supostas “teorias científicas da histórica” (como o marxismo) quanto para as teorias heroicas centradas nos grandes homens.
Ninguém está no comando, conclui Tolstói. Mas depois, incapaz de aceitar essa verdade, o mesmo Tolstói acaba procurando desesperadamente a verdade —o princípio organizador, a raiz de tudo, a explicação última para a condição humana.
Nas palavras de Berlin, o escritor russo é a figura mais trágica da “intelligentsia” porque vivia dividido entre o seu dom e suas opiniões; entre seu julgamento instintivo (de raposa) e sua convicção teórica (de ouriço).
Esse dilema não é exclusivo de Tolstói. Ele se impõe a qualquer criatura racional e bípede. Chega um momento em que os seres humanos se confrontam com a existência em toda a sua contradição. “Quando a gente acha que tem todas as respostas”, escrevia Luis Fernando Veríssimo, “vem a vida e muda todas as perguntas”.
As raposas sabem disso e aceitam isso. E procuram novas respostas para novas perguntas, sem nunca ceder à tentação de sistemas fechados, dogmáticos, pseudocientíficos.
Em política, isso se traduz numa desconfiança permanente de qualquer ideologia que procure a “solução final” para os problemas da sociedade. Essa solução não existe porque os problemas são múltiplos, conflituosos, incomensuráveis. Só existem respostas temporárias para problemas temporários.
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E, como lembrava o grande Leszek Kolakowski, um contemporâneo de Isaiah Berlin em Oxford, talvez o mais realista seja ser conservador-liberal-socialista, em doses variáveis consoante as circunstâncias. Socialismo sem liberalismo é opressão. Liberalismo sem conservadorismo é relativismo. Conservadorismo sem socialismo é injustiça social.
Os ouriços resistem. As perguntas podem mudar, mas a verdade é una, inabalável, permanente. Pode ser encontrada neste mundo ou no outro; pode estar dentro de cada um de nós ou nas “leis inexoráveis da história”. Mas existe —e existe para ser encontrada e aplicada.
Tolstói sabia que não havia respostas finais e, ainda assim, as procurou por toda a vida, contra seu próprio temperamento artístico.
E você, leitor? Raposa ou ouriço?
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