Não é que a literatura precise ensinar qualquer coisa. Aliás, é o contrário. Este espaço vem desde sempre apontando os muitos problemas dos livros para crianças e jovens que se preocupam mais em passar mensagens edificantes, lições de moral, ensinamentos pedagógicos e papagaiadas dos bons costumes do que de fato trabalhar com a linguagem, o texto e a imagem.
Mas isso também não quer dizer que a literatura deva ser alienada. O desafio do escritor e do ilustrador é justamente esse —dialogar com as questões do nosso tempo, mas sem abandonar a arte, a ambiguidade, a ousadia, o incômodo. Seja para crianças, seja para adultos.
Vitor Rocha se equilibra nessas questões sem bambear no seu novo livro “O Porteiro”, lançado pela editora Gato Leitor.
Sem palavras, a narrativa é um ótimo começo de papo com crianças sobre o fim da escala 6×1. As discussões sobre a diminuição da jornada de trabalho no Brasil incendiaram Brasília e as redes sociais nas últimas semanas. Apesar de já terem quase desaparecido do noticiário, soterrados pelas investigações da tentativa de golpe que o país sofreu em 2022, os debates sobre a escala 6×1 muito provavelmente chegaram aos ouvidos dos mais novos. E certamente geraram dúvidas.
É aí que entra “O Porteiro”. Desde a capa, Rocha vai criando questionamentos visuais que abrem espaço para adultos e crianças, pais e filhos, professores e alunos conversarem sobre o tema.
Logo de cara, somos apresentados ao personagem principal, um homem negro, vestido com roupa social e carregando um molho de chaves na mão. Em seguida, esse personagem aparece dentro de um vagão de metrô ou trem, acotovelando-se contra outros corpos, a maior parte deles também negros, todos espremidos e apertados no mesmo espaço.
Quando o protagonista chega ao trabalho, a narrativa visual se divide em duas. Nas páginas da esquerda, um quadradinho mostra uma cadeira e uma mesa, onde ele apoia uma garrafa térmica trazida de casa na mochila. Nas da direita, surgem um portão de grade branca, por onde entram e saem diversos personagens, quase todos brancos.
Quando associamos isso ao título do livro, logo entendemos que estamos diante de um porteiro, que mora longe, pega transporte público para chegar ao trabalho e não recebe nem um cafezinho na portaria para gerir a entrada e a saída de um prédio.
Ao longo da história, vamos acompanhando o porteiro abrindo e trancando o portão, almoçando sobre a própria mesa, sendo soterrado por dezenas de encomendas, tudo sempre em silêncio, sem palavras, sem receber nem sequer um bom dia —num movimento repetitivo, solitário e cansativo que acaba levando o personagem à exaustão.
Quando ele desmaia na calçada, por esgotamento ou excesso de calor, mais uma vez Rocha escancara as faíscas das relações sociais e raciais presentes no dia a dia de qualquer cidade. Quem presta socorro é um entregador de comida por aplicativo. É outro personagem negro e trabalhador quem chama a ambulância e estende a mão.
A partir daí, o condomínio vira um pandemônio. O caos se instala sem aquele empregado. Com aparente simplicidade, Rocha desenvolve uma crônica social complexa que toca em diferentes discussões. Por que alguns trabalhadores são invisíveis? Por que existe uma divisão racial tão evidente no país? Por que alguns se espremem como sardinhas para chegar a tempo ao trabalho?
E há, é claro, as perguntas que estão mais em pauta. Por que sempre vemos a mesma pessoa na portaria do nosso prédio, não importa se é sábado, domingo ou feriado? Por que porteiros e faxineiros trabalham enquanto crianças e adultos estão de folga da escola e do serviço?
Rocha resolve alguns desses incômodos com uma espécie de epifania coletiva com final feliz, propiciada pela tecnologia, na forma de um interfone eletrônico com senha —o que pode gerar debates, já que o FMI, o Fundo Monetário Internacional, já afirmou que a inteligência artificial deve afetar cerca de 40% dos empregos do mundo, o que não coloca as máquinas como desatadoras de nenhum nó trabalhista.
Seja como for, o fim do livro muda de linguagem visual e se abre em ilustrações de página dupla, mais arejadas, dissipando a claustrofobia da pequena portaria encerrada num quadrado. É quando aparecem também as primeiras e únicas palavras. O silêncio e a indiferença são quebrados no instante em que o porteiro ganha um espaço de trabalho mais amplo, equipado e agradável.
Só que as perguntas continuam lá. Nós, os leitores, demos bom dia hoje para porteiros, faxineiros, motoristas, atendentes, garis? Alguma vez já entramos na portaria do prédio para ver como é lá dentro? Como se chama o porteiro que abriu as portas e liberou as catracas para você?
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