Sobre um carro alegórico, dezenas de pessoas trajando farrapos se acotovelam para formar aquilo que se assemelha a uma escultura humana. No centro da multidão, uma figura se impõe. É um homem descamisado com os braços erguidos para o céu, como se estivesse em transe.
Atrás dele, um grande letreiro faz um convite: “Mendigos, desocupados, pivetes, meretriz, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxos. Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso baile de máscaras.” Naquele Carnaval de 1989, o Brasil atendeu ao chamado.
Intitulado “Ratos e Urubus… Larguem Minha Fantasia”, o desfile da Beija-Flor que usou o lixo para criticar o luxo estampou páginas de jornais, virou tema de livros e revolucionou a maior festa popular do país. Com esse trabalho, o carnavalesco Joãosinho Trinta alcançou o que tanto almejava. Surpreendeu a todos com a opulência dos restos.
Não à toa, a imagem desse desfile é um dos destaques de “Trabalho de Carnaval”, exposição que reúne cerca de 200 obras na Pinacoteca de São Paulo para refletir sobre o potencial disruptivo da folia.
“Eu diria que não só disruptivo”, afirma Ana Maria Maia, que assina a curadoria do projeto ao lado de Renato Menezes. “Queremos pensar também o poder do Carnaval de organizar lutas, narrativas, contranarrativas, intenções e respostas.”
Uma dessas respostas foi dada na Marquês de Sapucaí, durante o desfile da Beija-Flor. A agremiação pretendia levar ao Sambódromo uma estátua de Jesus Cristo trajando farrapos, como se fosse uma pessoa em situação de rua. Quem não gostou da ideia foi a Igreja Católica, que conseguiu na Justiça a proibição da imagem.
Joãosinho Trinta acatou a decisão de maneira heterodoxa. Levou a enorme escultura para o Sambódromo coberta por um saco de lixo preto. Os braços abertos de Cristo carregavam uma mensagem: “Mesmo proibido, olhai por nós!”.
Situações como essa mostram que a folia subverte por meio da irreverência, sem necessariamente partir para o confronto direto. “O Carnaval é da ordem da insurgência e desobediência”, diz Maia. “Mas essa desobediência também dá lugar a estratégias de convívio e de desobediência tática. Isso pode ser visto em tudo, inclusive do frevo.”
Um dos passos mais famosos desse ritmo é o “Faz que Vai, Mas Não Vai”, em que os dançarinos fingem que vão para a frente para, em seguida, dar dois passos para trás. “É um pouco essa estratégia de insinuar que você está na mesma corrente para então divergir.”
Na exposição, essa desobediência estratégica pode ser sentida também em um áudio de “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”, samba-enredo do Império Serrano vencedor do Carnaval do Rio de Janeiro em 1982.
Naquele ano, a agremiação decidiu fazer uma crítica à espetacularização da folia. Por isso, o samba-enredo lança um olhar nostálgico para a Praça Onze, região onde as escolas costumavam desfilar, nos anos 1930.
Essa postura combativa destoa da placidez que reinava nos carnavais da Europa, onde a festa ganhou força durante a Idade Média, após ter nascido como um ritual pagão para celebrar a fertilidade na agricultura.
“Quando chega ao Brasil, com a colonização portuguesa, ele encontra nessa sociedade convulsiva as bases para uma reinterpretação que contemplou o encontro entre o cânone e a resposta a esse cânone”, diz a curadora.
Essa fricção entre elementos distintos pode ser vista na tela “Carnaval em Madureira”, de Tarsila do Amaral. A obra retrata, num bairro carioca, um carro alegórico que toma de empréstimo as formas da Torre Eiffel, criando um deslocamento improvável. O monumento que simboliza o poderio francês surge quase que por mágica no subúrbio carioca.
Heitor dos Prazeres foi outro artista que fez da folia matéria-prima de seus trabalhos. Na mostra, há uma obra em que o pintor retrata foliões se divertindo, enquanto um bondinho cruza os Arcos da Lapa.
Na exposição, o encontro entre veículos e blocos carnavalescos volta a aparecer em outros trabalhos. É isso o que se vê em uma fotografia de José Medeiros que mostra três carros sem conseguir sair do lugar em razão dos foliões que se aglomeram ao redor dos automóveis.
Imagens como essa parecem evidenciar uma disputa entre pessoas e máquinas. “Isso levanta algumas perguntas: a rua e o Estado são para quem? Para os que estão dentro dos carros ou para os pedestres”, diz Maia. “Essa é apenas uma das formas que o Carnaval nos mostra esse estado de luta constante por poder, espaços e representações.”
Por vezes, essas disputas por territórios acontecem de forma quase literal. Em 2021, por exemplo, a Prefeitura de São Paulo desapropriou a antiga sede da Vai-Vai, que ficava nas imediações da praça 14 Bis, no centro da capital paulista, para a construção de uma nova linha do metrô. A agremiação estava na localidade havia cinco décadas.
Para refletir sobre esse processo, Rafa Bqueer criou a videoinstalação “O Peso de Esplendor”, um dos destaques da mostra. No trabalho, ela caminha no local em que ficava a sede da escola. Em suas costas, instalou um esplendor metálico de 40 quilos e fixou em seus pés destroços da demolição do prédio. “É como se tentasse se equilibrar entre o brilho do Carnaval e o peso dessa luta por espaços”, diz a curadora.
Além de discutir a relação entre folia e espaço urbano, a exposição leva ao público obras que evidenciam os bastidores da festa, imagens que mostram a rotina dos trabalhadores que fazem o evento acontecer. É o que se vê, por exemplo, na fotografia “Lucas Cordeiro”, de Pedro Marighella.
A obra retrata um dos profissionais que segura cordas para delimitar o espaço dos blocos pagos no Carnaval baiano. Esses trabalhadores são chamados de cordeiros, daí o título da fotografia. Não raro, eles relatam baixos salários e longas jornadas.
“Quando a gente elege falar do trabalho, queremos contribuir para uma justiça sobre o poder e o lugar de importância desses profissionais”, diz Maia. “Para a gente, é fundamental entender que o evento não acontece por acaso ou por milagre. O Carnaval é este grande monumento nacional justamente por causa dessas pessoas.”


