O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) dará início a uma nova fase da investigação que apura suposto esquema de corrupção com a movimentação de mais de R$ 1 bilhão em propinas pagas a auditores fiscais da Sefaz-SP (Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo).
Numa primeira etapa, a apuração mirou grandes varejistas, como Ultrafarma e Fast Shop, que teriam se beneficiado de créditos do ICMS liberados de forma irregular e com valores acima do devido. Segundo a investigação, o esquema seria coordenado pelo auditor fiscal da Fazenda de São Paulo Artur Gomes da Silva Neto, apontado como o principal operador do esquema.
A Operação Ícaro, que começou há cerca de seis meses, levou nesta terça-feira (12) à prisão temporária Sidney Oliveira, presidente da Ultrafarma; Mário Otávio Gomes, diretor estatutário da Fast Shop e dois auditores fiscais da Fazenda paulista —incluindo Silva Neto.
O relatório do MP-SP afirma que a Fast Shop teria obtido créditos de ICMS com a intermediação de Artur e, posteriormente, vendido parte desses créditos para empresas como Ambev, Cervejaria Kaiser e Kim Neto Indústria e Comércio de Panificação Ltda.
A venda de créditos tributários é legal, mas, numa segunda etapa, o MP diz que vai apurar se as empresas tinham conhecimento de que os créditos haviam sido obtidos de forma ilegal.
Segundo o MP-SP, o esquema investigado na Operação Ícaro envolvia o pagamento de propina ao auditor em troca da garantia de que os créditos tributários não seriam contestados pelo Fisco. A garantia deixaria o crédito mais sólido e, consequentemente, com menor deságio (desconto) na negociação —a prática de mercado é de um deságio de 5%.
A hipótese, segundo o promotor Roberto Bodino, seria a de que as varejistas, ao oferecer os créditos para outras empresas, mostrariam garantias oferecidas por Silva Neto de que eles não seriam contestados —com isso, conseguiriam vender esses créditos por valores mais altos e em menor tempo.
O MP espera que uma possível colaboração por parte das compradoras de créditos ajude a mapear a dinâmica das negociações e a ampliar o alcance da investigação.
A Cervejaria Kaiser diz, em nota, que foi surpreendida com a informação de que seu nome teria sido mencionado no inquérito relacionado à Operação Ícaro. “A empresa esclarece, em primeiro lugar, que não há qualquer relação com os fatos investigados. Todas as operações realizadas pela Kaiser, incluindo a aquisição de créditos de ICMS, sempre ocorreram em estrita conformidade com a legislação vigente e somente com créditos já homologados pelo Estado de São Paulo”, afirma o comunicado.
A Ambev afirma que seguiu toda legislação aplicável em relação ao uso do crédito citado.
A reportagem não localizou a defesa da Kim Neto Indústria e Comércio de Panificação Ltda. até a conclusão desse texto.
O criminalista Antônio Silvério Neto, do Coura e Silvério Neto Advogados, diz que, no caso em questão, a irregularidade teria ocorrido antes da homologação dos créditos, por isso as compradoras de créditos só podem ser responsabilizadas se houver prova de que atuaram com conhecimento prévio e participação no esquema —hipótese em que poderiam ser enquadradas como partícipes ou coautoras.
O tributarista Marcelo John, do Schiefler Advocacia, ressalta que, sem indícios claros de irregularidade na documentação fiscal de origem do crédito, a fraude só poderia ser percebida caso a empresa vendedora revelasse informações suspeitas ou se houvesse sinais evidentes, como a intermediação direta de auditores fiscais no negócio ou valores muito fora do padrão de mercado.
Nesse caso, diz o advogado, as empresas que se beneficiaram desses créditos irregulares podem sofrer autuações fiscais, com glosa (estorno) do crédito, cobrança do ICMS devido e aplicação de multas. “Além disso, se houver comprovação de participação consciente, os envolvidos podem responder por crimes contra a ordem tributária”, diz John.
Para o criminalista Anderson Almeida, se for comprovado que as empresas compraram créditos de forma irregular sabendo da origem ilícita, elas podem responder por crimes como receptação qualificada ou lavagem de dinheiro, além das sanções administrativas e fiscais.
Especialistas em tributação afirmam que a obtenção de créditos acumulados de ICMS em São Paulo esbarra em entraves significativos, especialmente devido à demora na análise e homologação dos pedidos pela Sefaz-SP —que, por lei, deve ocorrer em até 120 dias, mas frequentemente leva até oito meses, sem correção monetária.
POR QUE UMA EMPRESA CEDE CRÉDITOS DE ICMS PARA OUTRA?
Segundo Marcelo John, sócio da área tributária de Schiefler Advocacia, algumas empresas, pelo setor em que estão inseridas, acumulam créditos de ICMS.
As empresas exportadoras, por exemplo, acumulam créditos de ICMS quando adquirem insumos, mas, quando fazem a venda para fora, não utilizam esses créditos, já que não pagam ICMS na exportação. “É uma lógica fiscal do sistema brasileiro para não encarecer o produto exportado e garantir competitividade internacional”, afirma John.
Como os créditos de ICMS acumulados não serão utilizados por essa empresa, em vez de perder esse valor, a legislação do estado de São Paulo permite cedê-los a outro contribuinte, desde que tudo seja feito com autorização da Secretaria da Fazenda e dentro das regras estipuladas pela legislação.
O QUE A EMPRESA QUE VENDE OS CRÉDITOS GANHA?
A empresa que vende créditos de ICMS tem um crédito tributário parado e que provavelmente não irá aproveitar. Ao fazer a venda, recebe um pagamento em dinheiro (geralmente um pouco menor que o valor do crédito).
O advogado Marcelo John afirma que essa negociação melhora o caixa da empresa vendedora imediatamente, em vez de esperar para usar o crédito um dia ou pedir ressarcimento do governo (processo que pode demorar).
Folha Mercado
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O QUE A EMPRESA QUE COMPRA OS CRÉDITOS GANHA?
A compradora adquire os créditos de ICMS com desconto e usa o valor cheio do crédito para abater do ICMS que teria que recolher ao Estado. Ou seja, ela paga menos imposto efetivamente. Todo esse processo de transferência de créditos é permitido pela legislação, porém é autorizado e operacionalizado pela Sefaz-SP.
Por exemplo: a empresa tem R$ 100 mil de ICMS para pagar. Em vez de pagar tudo ao governo, pode comprar R$ 100 mil em créditos de outra empresa por, digamos, R$ 90 mil. Depois, usa os R$ 100 mil em créditos para quitar seu ICMS. No final, economizou R$ 10 mil.
“É um bom negócio para quem tem muito imposto a pagar e encontra alguma empresa disposta a vender o crédito com deságio”, diz o advogado.
COMO ERA O ESQUEMA APONTADO PELA ÍCARO
Segundo a Promotoria, o auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto orientava empresas do varejo sobre a documentação necessária para conseguir créditos de ICMS, corrigia o que fosse necessário e, de posse do certificado digital delas, fazia o pedido diretamente à Sefaz-SP, onde tinha cargo de chefia.
Em troca de propina, o supervisor aprovava créditos acima do valor devido e assinava documentos garantindo que os créditos não seriam revisados internamente pela Sefaz-SP, segundo os investigadores.
Esses créditos, segundo o MP, eram vendidos a outras empresas, em uma operação legal do ponto de vista tributário.
Até o momento, não há indícios de envolvimento da alta cúpula da Sefaz-SP, segundo a Promotoria.
O esquema investigado na Operação Ícaro é considerado pelo MP-SP resultado de uma “estrutura criminosa organizada”. Os alvos poderão responder por corrupção ativa e passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro, com penas superiores a dez anos de prisão para cada envolvido.