Psicodélicos: tensão entre cientistas e indígenas - 14/08/2025 - Virada Psicodélica

Psicodélicos: tensão entre cientistas e indígenas – 14/08/2025 – Virada Psicodélica

Tomo emprestado a Pietro Benedito e Emilia Sanabria o título do artigo “Nação Psicodélica? (Des)provincializando o Renascimento Psicodélico do Brasil”, publicado na edição de julho do periódico Science, Technology and Human Values. Ele capta bem a situação limítrofe da ciência nacional nesse campo, entre a excelência e as tensões que podem esfacelar um futuro promissor.

A dupla se debruça sobre a peculiaridade brasileira de figurar entre os líderes em pesquisas clínicas com tais substâncias. Com 34 artigos entre os mais citados, vem atrás de EUA (102), Reino Unido (78), Suíça (70) ou Espanha (42) e à frente de Alemanha (26) e Holanda (6).

Os dados constam de estudo bibliométrico publicado em 2021 por Aviad Hadar e vários autores. A posição do país havia sido destacada aqui alguns meses antes, ao noticiar que o Brasil detinha a terceira colocação entre 50 artigos de maior impacto em estudo de David Lawrence.

No levantamento de Hadar há um dado surpreendente. Ao ponderar as citações dos cem artigos de maior impacto pelo tempo desde a publicação, aparece na quinta colocação um estudo brasileiro de 2019: o primeiro teste clínico duplo cego de um psicodélico (ayahuasca) para depressão, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O trabalho do Instituto do Cérebro capitaneado por Fernanda Palhano-Fontes, Nicole Galvão-Coelho e Dráulio de Araújo contava então 84 citações, ou 42 por ano. Hoje, seis anos após a publicação, já amealhou 544 menções, quase 91 ao ano.
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Benedito e Sanabria alinham fatores para explicar por que o Brasil, tão distante das potências do Norte, tem desempenho proeminente segundo critérios de qualidade da ciência globalizada. Paradoxalmente, as condições propícias para a pesquisa psicodélica, aqui, também são as que a afastam do modo supostamente universal de produção de estudos biomédicos, com investimento privado, propriedade intelectual e regulamentação de fármacos.

O mais comum é apontar o acesso à ayahuasca no Brasil, onde foi legalizado o uso religioso do chá de origem amazônica que contém dimetiltriptamina (DMT). O sociólogo e a antropóloga vão além e identificam no caldo de cultura ingredientes como um robusto sistema de inovação farmacológica, financiamento público de pesquisa em universidades idem e uma tradição em promoção de saúde coletiva, medicina social, reforma psiquiátrica e redução de danos para dependentes.

Vários pesquisadores brasileiros têm um ou os dois pés nesses terrenos, como Luís Fernando Tófoli, Marcelo Falchi e Bruno Gomes, para citar três e injustiçar vários. Isso quando não são ou foram também membros de religiões ayahuasqueiras, coisa impensável para alguns cientistas do Norte Global.

Não deixa de ser peculiar essa proximidade de pesquisadores com o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. Benedito e Sanabria anotam que o mesmo não se observa, ou só de modo incipiente, em relação a povos indígenas que iniciaram os fundadores dessas igrejas na conjunção da chacrona e do cipó-mariri para obter a ayahuasca.

Em última instância, foram as tecnologias ancestrais –nas quais se inclui o emprego da jurema-preta por indígenas do Nordeste– que puseram a ciência estabelecida na pista terapêutica da DMT. Caberia à pesquisa psicodélica nacional fazer jus à própria originalidade dando um passo adicional de reconhecimento e aproximação com povos ayahuasqueiros e juremeiros.

Essa demanda por descolonização da pesquisa eclodiu com estrondo em dois eventos cobertos pela Folha, a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, no Acre, e o 1º Seminário de Medicinas Ancestrais: Jurema, em Pernambuco. A tensão está no ar, como se vê pela frequência de postagens sinalizando virtude nas redes sociais.

Um dilema paira sobre a vocação social dessa pesquisa no Brasil, capturada na palavra de ordem #PsicodélicosNoSUS: ou se unem os vários atores em desconforto (povos ayahuasqueiros e juremeiros, academia, grupos neo-xamânicos, o setor psi e o movimento psicodélico leigo) num pacto de convivência, ou a ferida colonial continua sangrando até a hemorragia aniquilar a perspectiva inovadora de ampliar o acesso seguro, respeitoso e justo a tais ciências de cura.


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