A ascensão do trabalho em plataforma é frequentemente narrada como um triunfo da inovação tecnológica. Trata-se de uma falácia conveniente. O que realmente impulsionou o modelo foi a combinação entre financeirização e pressão por redução de custos trabalhistas. A tecnologia não explica sozinha a desigualdade crescente. As plataformas prosperam porque operam em um vazio regulatório. Esse modelo se sustenta na negação dos vínculos de emprego, na pulverização das categorias profissionais e na desarticulação dos sindicatos — tudo isso travestido pelos eufemismos de “economia colaborativa”, “flexibilidade” e “autonomia”. Na prática, são relações de trabalho assimétricas e profundamente desprotegidas.No Brasil, o avanço das plataformas de emprego não foi um fenômeno espontâneo. Ele foi acelerado pela reforma trabalhista de 2017, que institucionalizou um regime de empregabilidade precário e fragilizou ainda mais a capacidade de organização dos trabalhadores. A promessa de modernização serviu, na realidade, para abrir as comportas à informalidade e permitir que empresas transferissem riscos e custos a trabalhadores cada vez mais vulneráveis. Dados recentes da PNAD Contínua – IBGE, 2025 – evidenciam o tamanho do problema: crescimento de 25,4% no número de trabalhadores plataformizados em apenas dois anos, atingindo 1,65 milhão em 2024. A grande maioria é composta por jovens, homens e trabalhadores com escolaridade média ou alta — pessoas que, em um mercado de trabalho minimamente estruturado, ocupariam posições mais estáveis. Em vez disso, enfrentam jornadas longas (44,8 horas semanais), baixa proteção social (apenas 35,9% contribuem à Previdência) e índices alarmantes de informalidade (71,1% em média, quase 88% no Nordeste).A urgência regulatória é evidente. O Estado brasileiro precisa abandonar a postura de espectador e assumir seu papel de garantidor de direitos. Isso implica: 1) reconhecer juridicamente as formas de subordinação algorítmica, pois a linguagem da “colaboração” é um evidente artifício para ocultar relações de exploração; 2) conferir densidade organizativa aos plataformizados, fortalecendo sindicatos e espaços de negociação coletiva; 3) instituir arranjos compulsórios de seguro social, com contribuições partilhadas entre trabalhadores, empresas e Estado — não é aceitável que plataformas multibilionárias se isentem de responsabilidades sociais. A suposta “flexibilidade” do trabalho em plataforma não pode ser moeda de troca para o abandono de direitos sociais. Essa barganha faustiana — trocar segurança social por maior autonomia — interessa apenas às empresas digitais, nunca aos trabalhadores.
Folha Mercado
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O que vemos hoje não é o “fim do trabalho assalariado”, mas a consolidação de uma massa de trabalhadores invisibilizados por relações de emprego intermediadas por aplicativos. Ignorar esse processo é escolher, deliberadamente, um futuro de produtividade baixa, informalidade persistente e desigualdade crescente. A economia digital brasileira não pode se apoiar, no século XXI, em relações laborais que reproduzem a lógica manchesteriana do século XIX. Regulamentar o trabalho em plataforma não é uma opção: é uma necessidade civilizatória.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço Políticas e Justiça da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Arnaldo Provasi Lanzara foi “Plastic People”, de Frank Zappa.
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