“O tráfico, para esses meninos, não é crime, é trabalho”, afirma Vanessa Cavalieri, juíza da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro —a única da capital fluminense responsável por julgar crimes cometidos por adolescentes.
Para ela, a frase resume um dos maiores fracassos do Estado brasileiro: a incapacidade de oferecer escola e emprego que disputem espaço com o crime.
A recente operação policial no Rio de Janeiro retomou o debate sobre o recrutamento de adolescentes pelo crime organizado. Após a ação da polícia, 121 pessoas morreram, entre elas dois adolescentes de 14 e 17 anos. Além disso, entre a mais de centena de presos, dez menores de 18 anos foram apreendidos.
Há dez anos à frente da vara, Cavalieri vê o envolvimento precoce de adolescentes no tráfico como resultado de uma sucessão de falhas estruturais: abandono escolar, desemprego, ausência paterna e falta de políticas que garantam renda e formação profissional.
Na avaliação da juíza, o problema começa ainda antes do nascimento, com a ausência de planejamento familiar. Ela destaca que 95% dos adolescentes que chegam à vara têm pai ausente. “Não adianta ter o nome na certidão se ele nunca viu o pai. Se o pai nunca apareceu, ele não tem pai.”
Falar sobre a falta dessa figura paterna, segundo Cavalieri, continua sendo um tabu social, mas demonstra como a sobrecarga recai quase sempre sobre as mães —responsáveis sozinhas pela criação dos filhos, muitas vezes sem rede de apoio.
“Cadê esse pai que não está enterrando o filho, que não vai visitar na cadeia, que não é chamado na escola? A responsabilidade não é só da mãe”, completa.
A juíza analisa que uma criança que nasce em uma família que não planejou aquela chegada já nasce em risco. Muitas vezes, trata-se de um núcleo empobrecido, sem acesso à educação formal e sem emprego fixo. Além da falta de preparo emocional, faltam recursos materiais para garantir o cuidado da criança.
A magistrada chama de distorção o argumento, presente nas redes sociais, de que essas mães têm muitos filhos por causa do Bolsa Família. “Na maioria das vezes, essa mulher nem recebe o benefício. Quando o filho sai da escola e vai para o tráfico, o Bolsa Família é cancelado.”
Para Cavalieri, a ausência de políticas públicas efetivas faz com que o tráfico se torne a única estrutura que oferece pertencimento e renda. “O tráfico usa adolescentes porque é uma mão de obra barata, fácil de repor e que não precisa de qualificação. É exploração de trabalho infantil”, afirma.
Ao entrar no tráfico, os adolescentes passam a ocupar funções como a de vapor, responsável pela venda de drogas no varejo, e a de radinho, que avisa sobre a chegada da polícia nas favelas. As jornadas chegam a 12 horas diárias e pagam pouco —a juíza cita que jovens que atuam como radinho recebem R$ 200. Ou seja, o sonho de enriquecimento rápido não se confirma.
Cavalieri afirma que, quando o adolescente chega à vara, ele já passou por uma sequência de abandonos. Ela cita a falta de creche, o fracasso escolar e a ausência de políticas de assistência e saúde. “Abandonou a escola, na semana seguinte entra no tráfico.”
Para a parcela que entra no tráfico, as medidas socioeducativas, quando bem aplicadas, têm um efeito importante na reedução, avalia Cavalieri.
“Quando o adolescente é apreendido, é um momento de todo mundo aterrissar. É um choque de realidade para ele e para a família.”
“[Existe] a ilusão de que o tráfico é uma irmandade e ele vê [quando apreendido] que isso é uma ilusão, não tem irmão. Ninguém visita na cadeira, ninguém ajuda a mãe com passagem para visitá-lo. Há uma compreensão de que errou, vê o sofrimento da mãe.”
Para a magistrada, este é um momento em que o Estado deve agir. “É uma janela de oportunidade de entrarmos ali com assistência, profissionalização, educação e falar ‘você viu que isso é uma droga, mas não precisa seguir nesse caminho’.”
Por outro lado, prossegue, “não temos nada a oferecer em troca”. “Eles pedem para que eu arranje um jovem aprendiz, mas eu sei que para 90%, eu não vou conseguir.”
Além desse desafio, a juíza afirma que muitas escolas não querem a presença daquele jovem. “Ao invés de incluir, não querem. Mesmo que eu consiga mandar um ofício, e ele é matriculado, como vai ser recebido nessa escola? [Imagina] o tanto que vai ser feito para excluir e forçar que ele abandone novamente?”
A juíza também aponta o fracasso da escola em evitar o ingresso desses jovens no crime. “A escola brasileira está ultrapassada. O ensino médio é feito para quem vai fazer faculdade, mas esse menino quer trabalhar logo. Ele quer ser barbeiro, cozinheiro, eletricista —e o sistema não dá essa chance.”
Segundo ela, também há exclusão na busca por trabalho. A juíza cita o caso de uma menina que vivia em um abrigo e não conseguia emprego. “Mudaram o endereço de um bairro pobre para um bairro nobre, e em dois dias ela recebeu 32 convites de emprego. O mesmo currículo, a mesma menina. Só mudou o CEP.”
Por isso, Cavalieri afirma que o enfrentamento ao problema depende do engajamento coletivo. “Achar que o Estado vai dar conta sozinho é um engano. Países ricos não dão conta sem a ajuda da sociedade. O empresário precisa entender que o jovem da comunidade é responsabilidade dele também.”


