O uso inadvertido do zolpidem transformou o medicamento mais popular para insônia em um problema de saúde pública no Brasil, com a escalada de dependência, abuso e crises de abstinência associadas às chamadas drogas Z.
O alerta vem de uma nova diretriz clínica nacional da ABN (Academia Brasileira de Neurologia), publicada na revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria. É o primeiro consenso brasileiro sobre abuso, dependência e manejo seguro dessas substâncias, que incluem também zopiclona e eszopiclona.
O documento foi elaborado por 15 especialistas de universidades como USP, Unifesp, Unicamp, UFPE (Univesidade Federal de Pernambuco) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). O grupo partiu da constatação nos consultórios e ambulatórios de que, sobretudo após a pandemia, cresceu o número de pacientes com dependência e eventos adversos relacionados ao zolpidem.
Dados da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) mostram que, entre 2018 e 2023, as vendas saltaram de 13,2 milhões de caixas para quase 22 milhões, mas a partir de 2024, com o endurecimento das regras, como exigência da receita azul e tarja preta na embalagem, já houve queda: foram 15,98 milhões de caixas em 2024 e 6,89 milhões no primeiro semestre deste ano.
Mas os especialistas avaliam que o impacto da medida ainda é limitado, especialmente entre os dependentes do remédio, que têm acesso a ele por meio de receitas falsificadas e compras em farmácias virtuais. Não há dados sobre esse mercado ilegal. A Anvisa informa que tem aberto dossiês investigativos, tentando averiguar a fonte fornecedora e combatendo a permanência da veiculação de publicidade online.
Uma das recomendações centrais da nova diretriz é a chamada prescrição com data de saída: o médico deve avisar desde o início que o medicamento é temporário e que haverá acompanhamento para reduzir e suspender o uso. “O plano de retirada começa no primeiro dia”, diz o neurologista Alan Eckeli, professor da USP de Ribeirão Preto e um dos autores da diretriz.
O crescimento do problema, segundo ele, parece ser um fenômeno brasileiro. Em congressos internacionais, médicos da Europa, América do Norte e Ásia afirmam não enfrentar situações semelhantes, devido ao controle mais rígido da prescrição e da venda.
“Aqui, a prescrição se expandiu com muita rapidez, muitas vezes feita por profissionais sem formação em medicina do sono e com foco apenas no sintoma, não no diagnóstico completo da insônia”, afirma.
As drogas Z foram lançadas nos anos 1990 como alternativa mais segura aos benzodiazepínicos, para tratar insônia ocasional sem causar sonolência matinal. Mas as atuais evidências mostram que elas também podem provocar dependência química, crises de abstinência e eventos adversos complexos, como sonambulismo, dirigir dormindo e delírios.
O zolpidem tem meia-vida curta, cerca de quatro horas. Ele é rapidamente absorvido e perde efeito em pouco tempo. Esse metabolismo acelerado facilita o desenvolvimento de tolerância: quanto menor a meia-vida, maior tende a ser o potencial de dependência. O resultado é uma escalada de doses e maior risco de efeitos indesejados.
“Temos pacientes que usam 7, 8, 10 comprimidos por dia, mas também atendemos pessoas tomando centenas de comprimidos diariamente. Isso é dependência química plena, com padrão semelhante ao de outras substâncias”, afirma Eckeli.
Temos pacientes que usam 7, 8, 10 comprimidos por dia, mas também atendemos pessoas tomando centenas de comprimidos diariamente. Isso é dependência química plena, com padrão semelhante ao de outras substâncias
Segundo ele, também é grande o número de relatos de comportamentos impulsivos e amnésia. “Atendemos pacientes que compraram pacotes de viagem, animais em leilão ou motos de alto valor durante episódios de amnésia induzida pela droga”, diz.
O ator João Vicente, um dos fundadores do Porta dos Fundos, relatou que, sob o efeito do zolpidem, já comprou 100 kg de pedras de rio, uma jaqueta de cangaceiro e uma espada ninja. Ele afirma ter desenvolvido dependência do remédio e deixado o uso sob supervisão médica.
Nas redes sociais, usuários relatam compras compulsivas e comportamentos bizarros. Embora alguns episódios pareçam anedóticos, Eckeli diz que há casos sérios, com perda de empregos e relacionamentos estáveis.
A suspensão abrupta do remédio também apresenta riscos e pode levar a crises de abstinência graves, com convulsões, ansiedade intensa, insônia rebote e até ideias suicidas. Por isso, a retirada precisa ser lenta e acompanhada por profissional. Às vezes, a internação é necessária.
“Em alguns casos, o médico pode substituir o zolpidem por outra medicação com menor potencial de abuso para facilitar a retirada”, afirma o psiquiatra Jair Mari, professor da Unifesp.
Eckeli lembra o caso de um paciente que tomava dezenas de comprimidos por dia, sofreu convulsões após interromper o uso, foi encontrado inconsciente e teve parada cardiorrespiratória na UTI. Sobreviveu, mas permanece acamado.
Outro paciente, que usava “na casa de centenas” de comprimidos por dia, também teve convulsões após ficar sem o medicamento durante uma viagem. “Ele iniciou o desmame, mas depois sumiu. Voltou ao zolpidem, teve nova crise, caiu e quebrou todos os dentes”, diz.
Médicos também relatam que muitos pacientes têm feito uso recreativo do zolpidem, durante o dia, em busca de relaxamento e desinibição. “Doses mais altas trazem efeito ansiolítico e desinibitório”, explica Eckeli.
É o caso da advogada Ana Lúcia, 54, de Ribeirão Preto (SP), que começou a tomar 10 mg à noite em 2020 para tratar insônia. Meses depois, a dose perdeu efeito. Ela aumentou por conta própria e também passou a usar o remédio, na apresentação sublingual, para aliviar a ansiedade no trabalho. “Dá uma sensação de conforto, de bem-estar”, diz. Desde janeiro, tenta se livrar da dependência, mas relata recaídas frequentes.
Segundo o psiquiatra Marcus Zanetti, professor da Faculdade Sírio-Libanês, a percepção é que a partir da chegada no mercado do zolpidem na apresentação sublingual, e, agora, spray oral, o uso abusivo e a dependência tiveram um salto. “Os pacientes dizem que precisam daquele gosto do medicamento.”
Já o psiquiatra André Negrão, do HC e também um dos autores da diretriz, percebe que, entre os seus atendimentos, a mudança regulatória freou a prescrição indiscriminada. Ele também observa relatos de aumento do preço no mercado ilegal, o que teria reduzido o número de novos dependentes. “Mas ainda recebemos muitos casos antigos.”
Para os especialistas, o zolpidem continua sendo eficaz e seguro quando prescrito corretamente, com avaliação completa, diagnóstico adequado e acompanhamento do paciente.
A diretriz da ABN reforça que o tratamento de referência para insônia, antes mesmo de qualquer hipnótico, é a terapia cognitivo-comportamental, que envolve higiene do sono, regulação de horários e estratégias para lidar com pensamentos ansiosos. O método, segundo os autores, é mais eficaz a longo prazo porque trata as causas da insônia, não apenas o sintoma.
Cuide-se
Ciência, hábitos e prevenção numa newsletter para a sua saúde e bem-estar


