A tradição de homenagear os santos Cosme e Damião no dia 27 de setembro tem particularidades que se diferenciam em partes do Brasil. Enquanto, no Rio de Janeiro, é geral crianças saírem às ruas em procura de saquinhos com doces, na Bahia, é oferecido o Caruru de Cosme, um prato com vários tipos de comidas de orixás do candomblé.
Além do próprio caruru, que é feito com quiabo, tem pipoca, representando as flores de Omolu, farofa de dendê para Exu, abará, feijoeiro fradinho, feijoeiro preto, canjica branca, pedaços de cana de açúcar e rapadura, banana frita no óleo para Oxumarê, entre outros mantimentos. Na celebração baiana está muito presente o sincretismo que marca as religiões de matriz africana no Brasil, que junta os santos católicos com os orixás.
O professor da Universidade do Estado da Bahia Ricardo Freitas, ogã (mando na religião do candomblé) do terreiro Ilê Omolu Oxum, da Iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, disse que o sábio veio da África e cá no Brasil se juntou à celebração dos santos, que eram médicos gêmeos, identificados nas religiões de matriz africana porquê ibejis, orixás que representam as crianças.
Sábio veio da África, destaca Ricardo Freitas – Ricardo Freitas – Registo Pessoal
“Esses gêmeos africanos ibejis vão ser sincretizados cá no Brasil porquê Cosme e Damião. O sábio em África é tão possante, entre os Yorubás, sobretudo, que chegou a reconfigurar o sábio de Cosme e Damião no Brasil. Cosme e Damião [santos católicos] não eram crianças, eram médicos adultos que fora, perseguidos por promoverem um tipo de medicina para o povo, o que os aproximou, na teoria do coronelismo, da bruxaria, porque curavam pessoas necessitadas. Por conta disso, pagaram o preço por feitiçarias, foram decapitados e morreram em 300 depois de Cristo (D.C). Por conta dos gêmeos africanos, que são crianças, os gêmeos católicos que são europeus trazidos pelo colonizador acabam também se transformando em crianças. A força do sábio em África chega ao Brasil de forma tão potente, que consegue transformar o sábio aos santos católicos em sábio africano, transformados em crianças”, revelou Freitas em entrevista à Dependência Brasil.
Segundo o professsor, a tradição de comemorar o dia 27 de setembro com o chamado Caruru de Cosme, uma comida à base de quiabo, na Bahia, significa também um festim que inclui outros pratos dedicados a orixás. “O caruru, também chamado de Caruru de Ibejis, é uma sarau, um ritual. Muita gente labareda também de Caruru de Promessa, porque a teoria de ser para petiz, os ibejis eram gulosos e comiam tudo, até o que não era comida deles. No prato de caruru, a comida deles é o feijoeiro fradinho, que no candomblé também se dedica a Oxum. A tradição nasce dentro dessa teoria de que deveriam dar o que manducar a divindades. Porquê os ibejis queriam manducar de tudo, logo tem diversas comidas de todos os orixás”, explcou.
A intenção de oferecer comidas para divindades acaba se aproximando também dos cultos indígenas, que têm o mesmo objetivo. “Para povos africanos, assim porquê para os indígenas cá no Brasil, o sábio é feito através da oferta de mantimentos ou das comidas. Tem gente diz que a vocábulo caruru vem da língua banto, kaluli, mas também de uma língua tupi que é a vocábulo caarariru, porque indígenas também davam comidas às suas divindades”, afirmou Freitas, lembrando que, além da cultura africana, existe uma influência possante da indígena na Bahia.
“A gente fala muito da baiana negra, da Bahia porquê a Roma negra, mas não pode olvidar a participação da cultura indígena neste estado. Muitas etnias, as mais conhecidas, são as do sul, tupinambá, pataxó, pataxó-hã-hã-hãe, mas, para o setentrião, têm muitos tuxás. Logo tem também uma influência da cultura indígena. Nesse encontro de africanos, indígenas e europeus, pelo português colonizador, é que surge o Caruru de Cosme, o Caruru de Ibejis, o Caruru de Promessa, dando perenidade a uma teoria de devoção”, observou.
A celebração na Bahia, que já se espalhou para outros estados, começa com a oferta de pratos a sete meninos que simbolizam Cosme, Damião, Doú, uma corruptela de Idowu em língua africana [também conhecido como Doum], Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi. É geral ver também na imagem que representa os gêmeos e figura de um terceiro irmão chamado de Doú ou Idowu, nome oferecido, em uma família africana, ao irmão que nasce depois de gêmeos.
Celebrações
Mãe Nilce de Iansã mantém tradição do Caruru de Cosme – Registo Pessoal
Desde cedo, Mãe Nilce de Iansã, de 72 anos, vive com a tradição de homenagear Cosme e Damião no dia 27 de setembro, mas com uma certa diferença de muitas crianças. Porquê o seu terreiro tem origem na Bahia, o uso é oferecer o chamado Caruru de Cosme, mas, quando era petiz, também ia detrás dos saquinhos de doces. “Eu fui nascida e criada dentro de um terreiro, mas também vivi com a prática de doces porque a minha família também dava doces e a gente pegava nas ruas”, revelou à Dependência Brasil.
Mãe Nilce lembrou com satisfação que, na quadra, morava em Ramos, na zona setentrião do Rio e era vizinha do compositor Pixinguinha, cuja esposa tinha hábito de partilhar doces finos porquê cajuzinho, brigadeiro e beijinho. “Ela botava em um guardanapo grande e fazia tipo uma trouxinha. Eu e minha mana e outras crianças da rua íamos junto com uma senhora em várias casas e, na moradia do seu Pixinguinha, porque o guloseima lá era gostoso. A gente pegava aqueles doces com o maior prazer. Logo eu conheço as duas práticas. Eu estou falando sobre vivência.”
Ricardo Freitas, que é carioca e fruto de pai baiano, mas mora em Salvador há 20 anos, levou para lá também a tradição de oferecer saquinhos com doces. Ele disse que atualmente na cidade já tem quem, além de oferecer o prato de caruru, inclui doces chamados lá de queimado, bombons de chocolate e nego bom que no Rio é divulgado porquê bananada. “Eu lembro da minha puerícia no Rio. Quando eu dou, ponho em um saco de refrigeração, que muita gente está fazendo também. É uma variação do saquinho de papel com a imagem de Cosme e Damião”, afirmou, sorrindo.
A cozinheira baiana Tina do Acarajé, de 64 anos, que se mudou para o Rio há 40 anos e mora em Vila Isabel, na zona setentrião da cidade, manteve a tradição durante esse tempo. Ainda na Bahia era geral ir a terreiros que ofereciam a comida às crianças. “Já sabia onde tinha. Eu recebia invitação e ia”, relatou à reportagem.
No Rio, Tina passou a fazer festas para oferecer o prato a amigos e agradecer por bênçãos alcançadas por meio das entidades. Leste ano, no entanto, Tina não poderá fazer porque se recupera de uma operação no cérebro, mas garantiu que logo que puder vai retomar a celebração. “Logo que passar essa temporada vou voltar a fazer para os amigos. Meu irmão fez até uma promessa para Cosme por justificação dessa cirurgia que, graças a Deus, foi muito boa, para eles poderem me sanar totalidade para eu tombar no trabalho”, prometeu.
E foi com alegria que o ogã Ricardo comemorou o vestuário do Caruru de Cosme ter sido revalidado pelo Recomendação Estadual de Cultura (CEC), porquê Patrimônio Cultural Incorpóreo da Bahia, depois de estudos do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. O Quotidiano Solene da Bahia desta sexta-feira publicou o decreto assinado pelo governador Jerônimo Rodrigues com o reconhecimento do título.
De pacto com o governo baiano, o ato de entrega do título será realizado hoje pelo secretário de Cultura, Bruno Monteiro, durante o I Seminário de Patrimônio Incorpóreo – Reconstruindo Memórias, no Museu de Arte da Bahia, no Galeria da Vitória.
“O sábio a São Cosme e Damião, os santos gêmeos da igreja católica, ganharam peculiar vista na cultura afro-brasileira e afro-baiana ao encontrarem correspondência com o sábio aos ibejis, divindades gêmeas das religiões afro-brasileiras. A sarau é no dia 27 de setembro, com o tradicional caruru”, informa o site do governo da Bahia, lembrando que neste dia é uso também festejar os santos e entidades com festas de sambas de roda, muito tradicionais no estado.
“A sarau se dá a partir de várias etapas para a sua realização, que ocorre de forma comunitária, com a participação das famílias e a celebração inclui práticas ritualísticas católicas e afro-brasileiras”, acrescenta o governo baiano.