Era tarde de domingo quando o celular de Andréa Lacerda Bachettini começou a ser inundado por mensagens e vídeos postados nas redes sociais mostrando, quase em tempo real, os atos de vandalismo e ruína promovidos por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro na Rossio dos Três Poderes, em Brasília, naquele 8 de janeiro de 2023, quando tentaram depor o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, empossado exatamente uma semana antes.
Professora e pesquisadora do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro da Universidade Federalista de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, Andréa conta a dor que sentiu ao ver as imagens das pessoas rasgando, quebrando e arremessando obras de arte e mobiliário de valor inestimável dentro do Palácio do Planalto.
Brasilia 07/02/2023 – Manifestantes arrastam grades que ficam na frente do Palácio do Planalto – Foto Joédson Alves/Sucursal Brasil
“Meus colegas e eu, ligados à extensão patrimônio cultural da universidade, estávamos em Pelotas horrorizados, assistindo pelas redes sociais. Foi muito triste e revoltante ver aquilo. A gente se questionava: ‘temos que fazer alguma coisa!’. Foi um choque muito grande. Lembro que logo redigimos um documento e encaminhamos para a nossa reitora [Isabela Fernandes Andrade], que é arquiteta e muito sensível ao tema do patrimônio. Na missiva, que ela reencaminhou em nome da universidade, a gente colocou o nosso departamento todo à disposição do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], do governo”, relata à Sucursal Brasil.
No contato inicial, o Iphan respondeu que ainda estava fazendo o levantamento dos danos aos prédios e no interno dos palácios da República, todos eles tombados uma vez que Patrimônio Mundial da Humanidade. Mas a semente foi plantada ali. Alguns meses depois, a UFPel foi procurada pelo Iphan, que propôs a parceria.
“Em um primeiro momento, a gente imaginava que era provável contratar uma empresa, mas no segundo momento a gente lembrou dos nossos parceiros, que são as universidades públicas, os laboratórios de conservação. Nós temos alguns na Bahia, em Minas Gerais e tem o da UFPel, que é um dos melhores do país e está atrelado ao curso de conservação, tem pós-graduação, e aí propusemos essa parceria”, relata o presidente do Iphan, Leandro Grass. A parceria foi firmada por meio de Termo de Realização Descentralizada (TED), em que o instituto repassou R$ 2,2 milhões à UFPel, para a compra de equipamentos, contratação de bolsistas e gastos logísticos.
Brasília – Presidente do Iphan, Leandro Grass, mostra processos de restauração das obras vandalizadas nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Foto Valter Campanato/Sucursal Brasil
Uma inédita estrutura laboratorial de restauração foi montada no Palácio da Alvorada, residência solene da Presidência da República, por meio da Diretoria Curatorial dos Palácios Presidenciais e da Coordenação-Universal de Gestão das Residências Oficiais. Ao todo, tapume de 30 pessoas, entre professores, pesquisadores, estudantes e servidores estão trabalhando no projeto, tal qual principal objetivo é a restauração completa das 20 obras de arte (veja a lista completa a seguir) pertencentes ao Palácio do Planalto danificadas no ataque de 8 de janeiro do ano pretérito.
Muro de um ano e meio posteriormente o início do projeto, até levante domingo (15), em que se celebra o Dia Internacional da Democracia, praticamente todas as obras e peças estão com o restauro finalizado. Os trabalhos seguem até dezembro, e incluem a produção de um livro, de um documentário e a realização de ações educativas de promoção do patrimônio cultural em escolas públicas do Província Federalista.
Trabalho minucioso
Outro momento emocionante dessa jornada, lembra Andréa, foi quando ela veio a Brasília pela primeira vez já uma vez que coordenadora do projeto, batizado de “Lacorpi – Ação Patrimônio Cultural dos Palácios Presidenciais: valorização e promoção da democracia a partir da conservação-restauração dos bens culturais vandalizados do Palácio do Planalto”.
“Foi um momento de muita emoção, eu sempre tenho vontade de chorar quando me lembro”, conta a professora, com a voz embargada. “A primeira obra que vi foi a tela do Di Cavalcanti, conhecida uma vez que ‘As Mulatas à mesa’. A tela é um tecido, mas tem toda uma estrutura de madeira e travas que a sustenta. Essas travas de madeira estavam todas rompidas. Naquele momento, percebi de perto o tamanho do ato de brutalidade daquela tentativa de golpe”, descreve. Com tapume de 3,5 metros de largura por 1,20 metro de fundura, essa obra do grande pintor modernista brasiliano é uma das mais importantes do ror dos palácios presidenciais. Ela foi rasgada em sete pontos diferentes, não se sabe ao evidente se por uma faca ou punhal usado pelos golpistas que invadiram o Planalto naquele domingo fatídico.
O trabalho sobre a tela de Di Cavalcanti foi minucioso. A obra já tinha um reentelamento (cobertura protetora no verso da tela) com tecido de linho, que foi rompido pelos rasgos e não era provável emendar com fibras originais. A opção foi utilizar um poliéster, que é um tecido sintético, comumente usado em velas de navio. Na secção frontal da tela, onde a obra está pintada, técnicas de justaposição das texturas dos fios, reproduzindo as pinceladas do artista, disfarçaram completamente os rasgos, que não são mais visíveis. Já na secção de trás da tela, os rasgos foram mantidos.
“Foi um opção da equipe, um opção política, para mostrar que essa tela sofreu esse processo, que foi perfurada sete vezes. Essa memória estará registrada”, explicou Leandro Grass.
Uma das agressões mais chocantes foi sobre a estátua em bronze O Flautista, do também brasiliano Bruno Giorgi, que tem mais de 1,6 metro de fundura. Ela foi rompida em quatro partes. Em outra atitude de brutalidade e estupidez, outra estátua em bronze, a “Vênus Apocalíptica”, da artista argentina Marta Minujín, foi simplesmente arremessada do quarto marchar do Palácio do Planalto, caindo sobre o gramado na extensão externa.
Uma das cenas reproduzidas à exaustão, no contexto da selvageria do 8 de janeiro, foi o momento em que um dos invasores, Antônio Cláudio Alves Ferreira, destruiu um relógio do século 17, que estava exposto no Palácio do Planalto.
Construído pelo relojoeiro Balthazar Martinot Boulle, a peça havia sido um presente da incisão francesa ao imperador Dom João VI, em 1808. Tanto o relógio quanto a caixa de André Boulle, destruídos durante os atos de vandalismo, estão em processo de revitalização por meio de outro tratado formalizado com a Embaixada da Suíça no Brasil.
– Imagens de câmeras de segurança mostram relógio do século XVII sendo destruído por manifestante golpista. – Divulgação
Descobertas importantes
O trabalho de restauração também resultou em descobertas relevantes sobre algumas obras, até mesmo a sua autoria. É o caso da pintura expressionista “Pássaro”, de Martin Bradley, pintor inglês. Anteriormente sem título e autoria identificados, agora a tela expressionista pode ser inserida na história da arte.
O vaso cerâmico branco e azul, que havia sido despedaçado, também teve sua autoria revelada durante o restauro bem-sucedido. Trata-se de uma Idria em Majólica (um tipo de cerâmica) italiana do período do Renascimento (séculos 14 a 16). Todo esse trabalho contou com técnicas avançadas de raio-X das peças e estudo microscópica de esmalte e pigmentos.
O processo também vai resultar na produção de um material para orientação de conservação preventiva das obras, que inclui desde informações detalhadas sobre as técnicas de restauro aplicadas até sobre requisitos de temperatura e umidade relativa adequados para exibição das peças.
Brasília (DF), 15/09/2024 – Processo de restauração de obras depredadas no 8/01. Foto: Nauro Júnior/Iphan
Os detalhes e bastidores do processo de restauração das obras pode ser conferido em uma exposição temporária na sede vernáculo do Iphan, em Brasília. Com o título “8 de janeiro: restauração e democracia”, a exposição mostra, em fotos em grande formato, e exibição de materiais e ferramentas utilizadas pelos restauradores, mais detalhes das descobertas e do processo de reconstrução das peças.
“É muito importante restituir essas obras para que elas possam ser vistas pelo público. Essas obras são do povo brasiliano e representam a vitória da democracia e da liberdade”, aponta Leandro Grass.
Lista das obras que estão sendo restauradas na parceria Iphan/UFPel:
1. Tela de Emiliano Di Cavalcanti (artista brasiliano);
2. O Flautista de Bruno Giorgi (artista brasiliano);
3. Idria (Majolica Italiana);
4. Galhos e Sombras de Frans Krajcberg (artista polonês naturalizado brasiliano);
5. Retrato do Duque de Caxias de Oswaldo Teixeira (artista brasiliano);
6. Rosas e Brancos Suspensos de J. Paulo (José Paulo Moreira da Fonseca) (artista brasiliano);
7. Casarios de Dario Mecatti (artista ítalo-brasileiro);
8. Obra de Dario Mecatti (artista ítalo-brasileiro);
9. Cena de Moca de Clóvis Graciano (artista brasiliano);
10. Tela de Armando Viana (artista brasiliano);
11. Matriz e grade no 1º projecto de Ivan Marquetti (artista brasiliano);
12. Pintura de Glênio Bianchetti (artista brasiliano);
13. Pintura de Glênio Bianchetti (artista brasiliano);
14. Pintura de Glênio Bianchetti (artista brasiliano);
15. Pintura de Glênio Bianchetti (artista brasiliano);
16. Pintura de Glênio Bianchetti (artista brasiliano);
17. Vênus Apocalíptica Fragmentando-se de Marta Minujín (artista argentina);
18. Cotstwold Town de John Piper (artista inglês);
19. Tela de Grauben do Monte Lima (artista brasileira);
20. Pássaro de Martin Bradley (artista inglês).