“Quer vir comprar comigo?”, perguntou a primeira americana com quem fiz amizade, no final dos anos 1980. “Comprar o quê?”, perguntei. Ir às compras, ela explicou, descrevendo uma atividade genérica. Foi quando percebi que dedicar horas a compras era um programa não diferente de passar a tarde no Museu Metropolitan ou numa peça na Broadway.
Como cresci no período Pleistoceno, anterior aos mega shopping centers, o consumismo foi meu primeiro choque cultural em Nova York. Apertando a mão de uma criança a caminho da primeira série, atravessava a rua para evitar certas vitrines porque ela também estava sob o impacto de descobrir quanta coisa havia para comprar e que meu salário teimava em não acomodar.O que agora me provoca curiosidade antropológica, quando o novo patriotismo é comprar só duas bonecas no Natal. O dirigismo econômico defendido em Washington hoje faria o ex-ministro Guido Mantega parecer um Milton Friedman com esteroides.
Estamos a semanas de prateleiras vazias, alertaram, suplicantes, CEOs de cadeias como Walmart e Target, mencionando um pesadelo eleitoral e símbolo da pandemia de Covid, quando houve a última convulsão da cadeia internacional de suprimentos. Dirigentes de portos americanos no Pacífico confirmam que, com a implementação das tarifas comerciais, caiu 50% a chegada de navios de contêineres da China, de onde vêm 77% dos brinquedos vendidos nos EUA.
Lá Fora
Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante aconteceu no mundo
A revista Rolling Stone revelou que pelo menos três membros do gabinete de Donald Trump estão praticando hoarding, a socialmente condenada estocagem de produtos que podem sumir do mercado, especialmente grande quantidade de papel higiênico e alimentos não perecíveis. Uma fonte da revista revelou que estava guardando dinheiro vivo em casa e tinha colegas conservadores, dentro e fora do Poder Executivo, fazendo o mesmo.
Quem se lembra de quando o alto preço de ovos se sobrepôs, nas urnas, a qualquer preocupação com as liberdades civis e a proteção da Constituição, no distante novembro de 2024? Toda semana, desde o começo de abril, a mídia americana publica recomendações de consumo defensivo, as compras que devem ser aceleradas para uma eventual escassez ou disparada de preços.O último presidente que pediu sacrifício aos americanos foi Jimmy Carter, no pronunciamento que entrou para a história como o Discurso da Malaise (mal-estar). O ano era 1979, e o presidente resolveu tocar nas feridas de um país emergindo do escândalo Watergate, do fiasco do Vietnã e vivendo sob estagflação, a confluência de inflação e estagnação de demanda econômica provocada pela crise do petróleo naquela década.
Como acontece com frequência, as narrativas políticas adornam os fatos, e Carter não pronunciou a palavra “malaise”. Mas falou com uma franqueza que em parte lhe custaria a reeleição, sobre a descrença geral em instituições, criticando o consumismo e a autoindulgência dos americanos. Ele apelou ao espírito cívico do público para aceitar sacrifícios individuais e coletivos para o bem do país. A alternativa, afirmou Carter, seria a fragmentação nacional e a primazia do auto interesse, que iam conduzir a uma noção enganosa de liberdade e ao direito de levar vantagem.
O discurso de 1979 não mencionou bonecas Barbie, talvez porque Jimmy Carter sabia que não se enfrenta o mal-estar de uma nação racionando brinquedos importados da China.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.