A atmosfera é de desolação no embarcação flutuante de Henrique Alcione Guerra, 55. O espaço é a moradia e a base logística do pescador. Está limpo, vazio e taciturno, aportado nas águas paradas do paranã do Capivara, um dos incontáveis tributários do rio Solimões. A comunidade São Francisco do Capivara está logo em frente.
Alcione, que mora sozinho no flutuante, está de mãos atadas. Ele pesca o pirarucu, o peixe gigante que é símbolo da amazônia. A pesca é feita dentro de um projecto de manejo, que inclui vigilância, resenha e conquista em períodos e quantidades certos, com retorno financeiro decisivo a dezenas de comunidades na região do médio Solimões. Os pirarucus, porém, estão inacessíveis.
A sequência de secas extremas, com vazantes sem precedentes em 2023 e em 2024 na região, isolou os lagos onde estão os peixes. O igarapé que leva aos lagos virou um fio d’chuva e está intransitável. Os furos, cursos d’chuva ainda menores e que conectam o igarapé aos poços, desapareceram.
A autorização para a conquista de 650 pirarucus adultos já foi dada, mas os pescadores da comunidade não têm o que fazer a não ser esperar.
As famílias perdem renda, passam por dificuldades para comprar iguaria e chuva, enfrentam a instabilidade nutrir.
“A situação está cruel nesses dois anos [2023 e 2024]”, diz Alcione. “Levante ano ainda está pior, a chuva desceu muito rápido. E o rio continua vazando.”
Sem chuva, os produtores artesanais de farinha de mandioca —a base da sustento na região amazônica— também vivem rotinas cada vez mais penosas no médio Solimões.
As comunidades estão sem rios, igarapés e poços para o repouso da mandioca, necessário para o amolecimento do tubérculo. Passaram a improvisar em tanques de plástico.
A chuva que chegava perto das casas de farinha —as chamadas “cozinhas de forno”— não existe mais. Os mais jovens, portanto, transportam na cabeça ou nas costas sacos de 70 kg a 80 kg, depois a torra nas cozinhas. Caminham de 15 minutos a uma hora e meia até um curso d’chuva.
Não há mais rios caudalosos para o transporte dos sacos de farinha até Tefé (AM) e, de lá, para Manaus. Barcos grandes, portanto, são substituídos por canoas, com transporte fracionado da farinha. Um trajectória de uma hora se transforma em seis horas.
Na comunidade Apuí, na região do lago Tefé, Adriel Fonseca Cacheado, 27, participa de todas as etapas de produção. Faz a torra em grandes tachos. Ensaca. Transporta, nas costas, o saco com mais de 70 kg de farinha até a extremidade do rio. Repete esse movimento oito vezes numa mesma tarde. Acorda cedo no dia seguinte e inicia a jornada até Tefé numa embarcação de pequeno porte.
“A nossa família, que tem oito pessoas, vem conseguindo produzir essas oito sacas por semana. Na enxurrada, conseguimos fazer 15”, diz Adriel. “Todo esse caminho, na enxurrada, é por chuva, da minha moradia até o porto.”
Os impactos da crise climática são sistêmicos. A veras do pescador Alcione é semelhante à de 1.200 pessoas, de 42 comunidades no médio Solimões, envolvidas na pesca monitorada do pirarucu. O projecto de manejo conta com assistência do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
A conquista do pirarucu pode render um lucro bruto de até R$ 5.000 por pessoa. Numa feira, o quilo do peixe é vendido por R$ 10 a R$ 12.
Alcione e mais dez pescadores de São Francisco do Capivara organizaram uma pesca de sulamba no prelúdios deste mês. Disseram ter pescado duas toneladas de peixe. Cada um ganhou R$ 350.
Na produção de farinha, assim porquê Adriel, milhares de agricultores passaram a trabalhar mais e a buscar adaptações em mais um ano de seca extrema, descrita por alguns porquê ainda pior do que a vivenciada em 2023.
Somente na região de Tefé, existem 3.575 agricultores que cultivam mandioca, segundo dados do governo do Amazonas. Manaus é o principal rumo da farinha produzida no médio Solimões. Em todo o estado, existem 18,4 milénio casas de farinha tradicionais, que envolvem famílias inteiras e técnicas seculares.
Para o manejo do pirarucu e para a produção de farinha, a chuva e o tempo de cada lanço são decisivos. As secas extremas e sucessivas, fora dos ciclos naturais de cheias e estiagens na amazônia, descalibraram essa técnica.
“As mudanças são radicais, o que embaralha o conhecimento tradicional do manejo do pirarucu, porquê o que diz saudação a prazos e repiquetes [cheias momentâneas dos rios durante a seca]. Não há mais previsibilidade”, afirma a antropóloga Edna Alencar, do Instituto Mamirauá.
“Tudo isso impacta na ecologia do peixe. A extensão do Capivara, por exemplo, era conhecida pela saturação de peixe pequeno”, diz o biólogo Jonas Batista, técnico do instituto.
Os moradores de São Francisco do Capivara também estão com dificuldades para pescar o tambaqui e outras espécies usadas nas refeições cotidianas. Eles recebem o Bolsa Família, mas a principal natividade de renda é a pesca.
“Estamos cá empoçados”, afirma Jocimar Rodrigues, 36. “Eu não consigo me lembrar de secas piores do que essas de 2023 e 2024.”
Rodrigues diz que moradores de comunidades mais distantes passam inópia.
Boa secção das famílias não tem chegada a chuva potável, e são precisos deslocamentos cada vez maiores para a pesca de subsistência.
No caso da farinha de mandioca, a produção reduziu pela metade. É o que ocorre na comunidade quilombola São Francisco do Bauana, vizinha de Apuí.
“As piores secas são as de 2023 e 2024, quando a gente produziu menos. Se não tem um esquina para botar a mandioca de molho, a produção para”, afirma Adrison Rocha da Silva, 37, vice-presidente da comunidade.
Maria Ezimar, 53, está há dois anos sem chegada a poços em São Francisco do Bauana. Pela primeira vez, ela a família usam tanques de plástico na produção.
“Nos outros anos, não secava porquê agora. E a seca não demorava tanto”, conta Ezimar. “Está só a vasa.”
Uma parcela expressiva dos produtores de farinha precisa de chegada rápido ao moeda das vendas e também de novas formas de escoamento do resultado para as cidades. Por isso, é generalidade a existência de atravessadores. O quilo da farinha, pago por esses revendedores, sai por tapume de R$ 4. Quem consegue conseguir as feiras de Tefé pode vender o resultado pelo duplo do preço.
A Apafe (Associação dos Moradores e Produtores Agroextrativistas da Floresta Vernáculo de Tefé e Entorno) desenvolveu uma marca para a farinha produzida nas comunidades, explicitando a origem e qualidade do resultado. Nesse caso, o quilo da farinha pode conseguir R$ 14.
“A produção caiu muito, e há uma perda muito crescente das plantações”, afirma Zila de Castro, 38, que integra o parecer da Apafe.
A seca afeta a produção de cultivação familiar e o manejo de pesca de forma distinta em diferentes comunidades.
No Jurupari, no rio Japurá, os indígenas kokamas têm conseguido tomar poucos pirarucus, depois longas jornadas para conseguir os lagos e transportar o peixe nas costas, em um trajectória onde antes existia chuva. Eles também pescam tambaqui e surubim. Os peixes são levados para a feira de Alvarães (AM).
E, na comunidade Santa Clara, onde o Solimões também virou deserto, os agricultores desistiram de plantar melancia, depois perdas em 2023. O cultivo de hortaliças, neste ano, foi deslocado para mais perto da chuva, em áreas que inundam na enxurrada.
Pescadores e agricultores que vivem diretamente os impactos da crise climática dizem que, apesar da previsibilidade da seca severa em 2024, não houve ações preventivas ou emergenciais por secção do poder público.
Os trabalhadores do pirarucu cobram chegada a cestas básicas e chuva potável, protraimento dos prazos dos planos de manejo do pirarucu e do tambaqui, antecipação do pagamento do seguro defeso —pago durante o período de reprodução de peixes.
Os produtores de farinha querem que as comunidades sejam equipadas com veículos que facilitem a logística durante a seca, além de esteio para escoar a produção.
Os municípios de Tefé, Alvarães e Maraã — aos quais estão ligadas as comunidades percorridas pela reportagem — não responderam aos questionamentos.
O governo Lula (PT) disse ter entregue 13 milénio cestas de víveres a famílias impactadas pela seca, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Entre elas, 850 cestas para pescadores e extrativistas na região de Tefé e 80 para pescadores na região de Alvarães.
A previsão é de que sejam entregues mais 10 milénio cestas de víveres no médio Solimões.
No último dia 10, Lula visitou Tefé e anunciou medidas de combate à seca no Amazonas. Segundo o Ministério do Meio Envolvente e Mudança do Clima, estados e municípios recebem recursos pelo Sistema Vernáculo de Resguardo Social, que podem ser usados na compra de chuva e comida. Uma sala de crise foi criada pelo governo para prestar assistência, disse a pasta.
Em nota, a gestão do governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), afirmou que “questões logísticas” atrapalharam a entrega de 2.000 cestas básicas destinadas a Maraã no último dia 14. Também estão previstas 2.000 cestas para a região de Alvarães. Segundo o governo, as duas cidades contam com purificadores de chuva.
Onde há manejo de pirarucu, a esperança é por um repiquete, um aumento momentâneo do volume de chuva antes da enxurrada. Se o igarapé subir 5 metros, os pescadores tentarão conseguir os pirarucus.