A maior certeza enquanto planejávamos nossa viagem para Jericoacoara era que não iríamos ficar correndo de atração em atração atrás das melhores vistas e fotos. Afinal, nossa turma seria de dois casais formados exclusivamente por pessoas cegas.
Não que o plano fosse um passeio ameno. Até haveria um dia reservado para ficar na beira da lagoa de barriga para cima na rede. Mas também separamos outro para adrenalina, com descidas de esquibunda e toboágua.
Os momentos mais radicais para mim, porém, não foram essas escorregadas de dar frio na barriga. Eles foram vividos na própria vila de pescadores do litoral cearense.
Nas últimas décadas, conforme se consolidava como um dos principais destinos turísticos do Brasil, Jericoacoara passou a contar com energia elétrica, conexão à internet rápida, campeonatos internacionais de windsurf e shows de piseiro ao vivo a céu aberto, mas a acessibilidade não chegou.
O desafio já apareceu logo ao sair do carro que nos levou até a vila. As ruas eram todas de areia, com pouquíssimas calçadas,o que tornou as bengalas que trazíamos apenas um instrumento de sinalização de nossa deficiência, inúteis para reconhecer o caminho.
Talvez eu não fosse tão aventureiro sozinho, mas minha turma não viu nisso nenhum impedimento para ir para onde quiséssemos.
O jeito de andar por ali era “encangar”,verbo que meus amigos cearenses que nos acompanharam na viagem tomaram emprestado do comércio de caranguejos presos a uma corda. Fazíamos uma fila, um segurando no ombro do outro, e saíamos procurando nosso destino. Para chegar à praia ou à pracinha, por exemplo, apurávamos os sentidos para encontrar a esquina a partir de ligeiras mudanças de som e temperatura que conseguíamos perceber quando não havia nenhuma casa ao nosso lado. De noite, apurávamos o olfato para encontrar a barraca de churrasco ou a audição para perceber barulho de louça em uso em algum restaurante.
Devagar e com cautela, andávamos um bocado por nossa conta. Por vezes encontrávamos o que queríamos. Em muitas outras alguém da cidade ou outro turista logo puxava assunto e nos oferecia companhia até o local que gostaríamos de ir.
Isso no começo. Até fazermos amizade com a equipe da Pousada Coral Negro, que nos recebeu com muita dedicação e vontade de atender bem aos primeiros clientes com deficiência visual que estiveram por lá. Empatia na medida certa. Por um lado, se pedíssemos, ajudavam a achar a barraca de caipirinha da dona Chica para curtirmos à noite. Por outro, respeitavam nossa autonomia e deixavam que a gente subisse a escada em caracol que dava acesso ao quarto por conta própria, mesmo depois de voltarmos alegres trazidos pelo garçom Caio do El Patroni, depois de provarmos todos os drinques da praça.
Assim como vivenciamos um jeito de saltar por cima das barreiras de acessibilidade da vila, também foi possível para mim experimentar uma nova forma de entrar no mar com independência.
Apesar de saber nadar, nunca deixei a água subir acima do joelho sozinho ou sem uma pessoa que enxergasse monitorando. O problema era a saída após o mergulho. Imaginava que eu entraria no mar, a correnteza iria me deslocar para o lado e eu jamais sairia pelo ponto inicial nem conseguiria encontrar o caminho de volta para casa.
Coisa de cego recente, que ainda não sabe todos os macetes de quem faz parte do grupo há mais tempo. Com minha turma descobri que dava para prestar atenção às caixas de som da praia e ter elas como referência na hora de voltar. Parte do grupo ficava na água, outra na areia e, chamando nossos nomes, nos encontrávamos com facilidade para trocar de lugar.
Para a próxima viagem vamos fazer ainda mais barulho, com apitos para facilitar a reunião do grupo na areia. Afinal, para essa turma, barreiras de acessibilidade são para ser puladas com coragem, criatividade e uma ajuda de quem topa receber a gente de portas abertas.
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